Advogados, escrevam menos e ganhem mais dinheiro

Quando um novo estagiário aparece para trabalhar comigo, a primeira ordem que recebe é a seguinte: nenhuma petição pode ter mais de 20 páginas. Nenhuma. Pode ser o caso mais complexo que já surgiu no Brasil desde quando as Ordenações Filipinas ainda estavam em vigor. Ele deverá ser reduzido a, no máximo, duas dezenas de folhas. E já acho isto um verdadeiro exagero. Idealmente, uma petição deve ter entre 6 e 12 laudas. Para mim, se uma causa precisa de mais de vinte páginas para ser sustentada, o direito que a embasa não deve ser nada bom.

Uma vez, no Ministério Público, ajuizei uma ação civil pública simples. Ela tinha 14 ou 15 páginas, o que já é muito para mim. Era uma questão jurídica banal, havia dezenas de casos idênticos àquele tramitando na Justiça. Não era nada demais. Os juízes entenderiam o caso com um lançar de olhos sobre o pedido.

Pois bem, para responder a esta ação, o advogado da parte contrária apareceu com uma contestação de 180 laudas. Ele entregou o calhamaço com um sorriso de orgulho ao juiz (na Justiça do Trabalho a contestação era apresentada fisicamente em audiência). Ainda comentou, sardonicamente, que sua defesa estava “um pouquinho grande“. Imediatamente concluí que se tratava de um tolo ou trapaceiro. Era tolo se precisava de 180 laudas para contestar uma ação de 15. Era trapaceiro se estava cobrando honorários do seu cliente por lauda. Depois, enfrentei este advogado outras vezes e concluí que se tratava de um tolo e trapaceiro.

Por isso, creio que os tribunais deveriam limitar, por ato administrativo, o tamanho das petições. É assim nos Estados Unidos.

O equivalente ao código de processo civil americano (Federal Rules of Civil Procedure) estabelece em sua regra 8 que as petições devem ser “simples e breves” (short and plain). Não raro, os juízes determinam aos advogados que sejam menos prolixos e substituam as suas petições por outras mais sucintas, como já aconteceu na Justiça Federal de Nova York, em decisão do Juiz William Pauley III. A Suprema Corte tem um regulamento próprio e estabelece em seu Regimento Interno (rule 33) um limite de nove mil palavras para o writ of certiorari (equivalente ao nosso “recurso extraordinário”). Se o recorrente não apresentar sua petição com precisão, brevidade e clareza, o recurso poderá deixar de ser conhecido (rule 14, 3 e 4).

Aqui no Brasil, algumas tentativas tímidas têm sido tentadas, em razão da implantação do processo eletrônico. O Tribunal de Justiça de São Paulo estabeleceu oficialmente um limite de 300 páginas, o que é a mesma coisa que nada. Nesta mesma corte, durante sua permanência na corregedoria (2014-2015), o Desembargador José Renato Nalini lançou uma campanha para convencer as partes e os juízes a limitarem as petições e decisões a dez páginas, mas parece que a ideia não decolou. O Tribunal de Justiça de Santa Catarinaconsiderou válida decisão de juiz de primeiro grau que mandou reduzir de quarenta para dez páginas a petição em um processo trivial. O TRT de Minas Gerais fixou um limite – razoável – de quarenta páginas para recursos, mas a medida foi derrubada pelo TST. O mesmo ocorreu há dois anos em Brasília, conforme noticiado pelo JOTA: uma juíza da 5ª Vara do Trabalho determinou que o advogado do Banco do Brasil reduzisse uma petição de 113 para no máximo 30 laudas, mas a decisão acabou sendo revertida pelo TRT da 10ª Região.

Mesmo que não houvesse limites legais, as petições nos EUA seriam naturalmente curtas, pois os americanos não gostam de perder tempo com firulas e bobagens. Vou dar um exemplo. Em 2016, houve o rumoroso escândalo de assédio sexual na Fox News. O todo poderoso diretor Robert Ailes, um dos papas da TV americana, estava importunando uma das principais âncoras do canal, a bela e respeitada Gretchen Carlson. O caso saiu em toda a imprensa dos EUA e até na do Brasil – lembro de o ter visto na Folha de S. Paulo.

Confesso que, como a maior parte das pessoas normais, adoro os detalhes sórdidos de um bom escândalo judicial, então procurei e encontrei a petição inicial na internet. Para minha surpresa, o processo não estava em sigilo. Mas a surpresa ainda maior veio com o tamanho da petição: 8 (oito) laudas. Na peça inaugural não há referência à doutrina ou à jurisprudência.

Aliás, nos EUA, muitos casos simples, como divórcios e acidentes de trânsito, são iniciados mediante uma petição formularizada, disponível no site dos tribunais, bastando ao autor preenchê-la.

Voltando ao caso: logo depois do ajuizamento da ação contra a Fox News, os jornais americanos noticiaram que houve um acordo para por fim à contenda – nada mais, nada menos do que 20 milhões de dólares em favor da autora. Vamos supor que a advogada de Gretchen Carlson, a Dra. Nancy Erika Smith, de Montclair, Nova Jersey, tenha cobrado 20% de honorários, ou seja, modestos 4 milhões de dólares. Isto significa que ela faturou quinhentos mil dólares por lauda de petição inicial! Se ela adotasse o modus operandi de alguns advogados brasileiros e escrevesse uma inicial de 50 laudas, invocando doutrina e jurisprudência, teria faturado somente oitenta mil dólares por lauda. Vejam, portanto, o ganho de produtividade. Não é a toa que Benjamin Franklin consagrou o bordão time is money.

Então, reduzir compulsoriamente o tamanho das petições iria melhorar a vida de todo mundo.

Eu sei que a OAB provavelmente protestaria. Certos xaropes de plantão alegariam que tal medida violaria as prerrogativas da advocacia, cerceando a liberdade de expressão do advogado e o direito de defesa de seus clientes. Bem, respondo a estes doutores que se querem exercer sua liberdade de expressão e criação sem limites, escrevam livros jurídicos com suas teses do tamanho de “A Montanha Mágica” ou de “Guerra e Paz” (dois volumes). E comprará e lerá a maçada quem quiser e não quem for obrigado a isso por dever de ofício.

Eu sempre digo aos meus alunos que o pior da nossa profissão é ser obrigado a ler coisas inúteis e cacetes, perdendo um tempo que poderia ser dedicado à leitura de estetas como Machado de Assis ou Tchekhov. Ou mesmo, a jogar videogame com o seu filho. Por isso, sinto profunda inveja de trabalhadores manuais como cozinheiros e eletricistas e por vezes lamento não ter escolhido uma dessas profissões. É claro que eles também precisam estudar. Mas, por exemplo, o cozinheiro lê somente o estritamente necessário ao trabalho, uma receita, digamos. Ele não precisa perder horas lendo doutrinas repetitivas e jurisprudências incoerentes de outros cozinheiros ilustres sobre a melhor forma de preparar um assado de cordeiro ao alecrim.

Muitas pessoas acreditam que é na faculdade de Direito onde se aprende a escrever uma boa petição. Não é.

Aprende-se a escrever – qualquer coisa – antes de entrar na faculdade. Tento convencer os meus alunos que o direito deveria ser tratado de uma forma simples, apesar da sua inata complexidade. Numa petição inicial basta dizer o que aconteceu com as partes e qual o direito invocado, formulando ao final um pedido.

É só isso, nada mais; é efetivamente mais fácil do que escrever as instruções para o preparo de um spaghetti a carbonara (prato predileto do meu filho; uma vez tentei escrever a receita para um amigo e achei mais complicado do que minutar um recurso de revista). Então, vamos deixar o corporativismo de lado e falar com franqueza: não precisa sequer fazer faculdade de direito para escrever uma petição inicial. Qualquer pessoa que cursou o ensino fundamental em um bom colégio consegue fazê-lo.

Os americanos sabem muito bem disto, pois, como vimos acima, as petições por lá são diretas e simples, sem salamaleques e pedantismos inúteis. Há casos célebres de pessoas comuns que conseguiram inclusive chegar à Suprema Corte, escrevendo suas razões de próprio punho. E tiveram seus recursos providos! Vou contar três deles, pois são muito reveladores e inspiradores.

O mais importante desses é o caso Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335 (1963), não só porque o autor recorreu sem advogado, mas porque esta acabou sendo uma das mais importantes decisões da história da Suprema Corte no século XX – ironicamente, admitiu-se ali pela primeira vez a imprescindibilidade do advogado em questões criminais.

O caso ocorreu da seguinte forma. Na madrugada do dia 3 de junho de 1961 um homem adentrou em um clube de natação em Bay Harbor, Panama City, Florida. O desconhecido quebrou uma porta, arrebentou uma máquina de vender cigarros e um equipamento de som; também furtou dinheiro de uma caixa registradora. Pela manhã, uma testemunha declarou que tinha visto Clarence Earl Gideon deixando o local por volta de cinco horas da madrugada, com uma garrafa de vinho e dinheiro no bolso. Com base nesta única prova, a polícia prendeu Gideon.

Ele foi acusado de invasão de propriedade e furto. Gideon, um homem de meia idade, compareceu em juízo sem assistência jurídica, por não ter recursos para contratar um advogado. O juiz da corte estadual local lhe dirigiu as seguintes palavras: “Sr. Gideon, sinto muito, mas eu não posso indicar um advogado para representá-lo neste caso. De acordo com as leis do Estado da Florida, a única hipótese de designação de um advogado para representar um réu é aquela em que a pessoa é acusada de um crime punível com penal capital. Eu sinto muito, tenho que negar seu requerimento de designação de um advogado para defendê-lo neste caso”. Então Gideon respondeu-lhe: “A Suprema Corte dos Estados Unidos diz que eu tenho direito de ser representado por um advogado”.

Ele não estava rigorosamente com a razão, pelos menos até esse momento, como veremos. Gideon passou então a exercer o seu direito de defesa por si próprio, declarando sua inocência no caso. O júri condenou-o a cumprir uma pena de cinco anos de prisão. Em sua cela na Florida State Prison, Gideon estudou os livros de direito e jurisprudência que encontrou na biblioteca do presídio. Escrevendo à lápis, Gideon formulou uma petição requerendo o writ of certiorari à Suprema Corte.

Até então, a Suprema Corte só admitia a obrigatoriedade de assistência jurídica pelos Estados em hipóteses que pudessem culminar com pena capital; afora esta circunstância, a designação de advogado só era considerada exigível em casos excepcionais, como na hipótese em que o réu fosse analfabeto ou mentalmente incapacitado, ou ainda em casos de grande complexidade processual que inviabilizassem a autodefesa.

Em decisão unânime, a Corte modificou este precedente, para determinar a obrigatoriedade de assistência judiciária em todo e qualquer processo criminal perante a Justiça dos Estados.

Foi uma das decisões mais celebradas da Era Warren. A Suprema Corte anulou o processo e Gideon foi submetido a novo julgamento, desta vez com assistência de advogado, que produziu novas provas. Finalmente, ele foi absolvido. Ah, sim, a petição à lápis de Gideon tinha cinco páginas. Ela hoje é considerada um documento importantíssimo da história dos Estados Unidos e está depositada no National Archives, em Washington, mesmo lugar onde os turistas podem ver o exemplar original da Constituição elaborada na Filadélfia, em 1787.

Em período mais recente, dois casos chamaram a atenção da imprensa americana. Em 1998 Shon Hopwood teve que encerrar compulsoriamente sua fracassada carreira de assaltante de bancos no Nebraska, depois de ser preso e metido atrás das grades. No início dos anos dois mil ele estava cumprindo uma sentença de doze anos em um presídio federal, quando um companheiro de cela, percebendo sua inteligência, pediu-lhe que interpusesse um recurso em seu nome para a Suprema Corte.

Sem nada de mais interessante para fazer na prisão, Hopwood começou a estudar direito a apresentou o writ of certiorari para a alta corte constitucional americana. Um advogado de Washington leu a petição e considerou-a uma das melhores desta espécie que havia lido em toda a sua vida. Ele aceitou arguir o caso na Suprema Corte – desde que Hopwood o ajudasse com informações sobre o processo – e obteve uma decisão unânime em favor do réu – caso Fellers v. United States, 540 U.S. 519 (2004).

Hopwood, ao deixar a prisão, conseguiu uma vaga na Faculdade de Direito da Universidade de Washington e depois de formado foi trabalhar como assessor de uma juíza federal. Sua carreira jurídica seguiu de vento em popa e hoje o ex-assaltante de bancos é nada mais nada menos do que professor de direito penal na prestigiosa faculdade de direito da Georgetown University.

O último caso, mais recente, ocorreu em 2015, quando a Suprema Corte acolheu o direito de liberdade religiosa de um prisioneiro do Arkansas, que havia recorrido de próprio punho para defender o seu direito – o caso Holt v. Hobbs, 574 U.S. __ (2015).

No Brasil também já vi coisas assim, embora seja um pouco mais raro. Quando eu comecei a estagiar, em Curitiba, vivíamos os últimos suspiros das máquinas de escrever. Eu trabalhava para um conceituado escritório trabalhista, que atendia grandes sindicatos. Numa época, tínhamos lá para ajuizamento uma enxurrada de ações idênticas contra uma mesma empresa, a Itaipu Binacional. Mudavam apenas alguns fatos, como as datas de admissão e desligamento, a função do trabalhador, o salário, etc.

Então, o escritório desenvolveu um método industrial de produção de petições iniciais (eu diria um método quase fordista). Como ainda não existia computador, foi criado o que chamávamos de “cardápio”. Era uma petição impressa longa, padronizada e completa, com todos os pedidos trabalhistas possíveis e imagináveis. Com as informações do cliente, apenas preenchíamos os espaços em branco e riscávamos o que não seria incluído na petição. Se necessário, acrescentávamos algumas anotações à caneta, nas margens.

Depois, passávamos o “cardápio” ao datilógrafo, o Donizete, que era um às na máquina de escrever (lembro bem que eram aquelas IBMs elétricas bojudas, pesadas e azuis – como não tenho saudade delas…). Donizete cursava química e fazia bico no escritório. Trabalhava até alta madrugada, ganhando por folha digitada. Por vezes eu chegava às oito da manhã para trabalhar e ele ainda estava no tec-tec-tec, com os olhos esbugalhados, desde a noite anterior!

De tanto ler as petições, aprendeu a CLT inteira e passou a ser ele próprio um exímio redator de petições inéditas e mais complexas. Foi contratado como rábula, sem jamais ter pisado em uma faculdade de Direito. Aprendeu a fazer recurso de revista e dava aula para os advogados iniciantes. Debatia a legislação trabalhista com a autoridade de um ministro do TST. Talvez tenha se transformado em uma grande jurista sem diploma e sem a carteira da ordem. Não sei dizer, pois não o vejo há mais de vinte anos.

Então, se pudesse dar apenas um único conselho a um jovem advogado, eu lhe diria: seja objetivo, escreva com concisão e clareza, sem descurar da elegância de estilo. E, tendo poupado o seu tempo, gaste o que sobrou com Machado de Assis e Tchekhov. Ou, simplesmente, jogando videogame com seu filho.

CÁSSIO CASAGRANDE
Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense - UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.


FONTE: Com informações do JOTA

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