Morgana e o Transtorno do Ciúme Iminente

Ela padecia de TCI, Transtorno do Ciúme Iminente. Ainda pouco conhecida entre as patologias clínicas de amores mal resolvidos, vagava em seus labirintos sem lenitivo nem consolo. A criatividade em urdir provável traição de seu amado fazia o juízo rodar mais que os casais nos áureos tempos das valsas vienenses. Era um presente sem passado, que deixava marcas profundas a um futuro descolorido. Traumas produzidos sem motivo, cortantes, dos quais não sabia escapar.

A cegueira da desconfiança de Otelo por Desdêmona, incentivada por Iago, era branda na construção do mito da perfídia clássica eternizada por Shakespeare. Ela não precisava de ninguém a incentivar qualquer suspeição. Do veneno que impregna a alma pelo ciúme, era geradora e consumidora, autossuficiente. Em alimentação permanente, mantinha-se intoxicada pelo receio que seu amor se apegasse a outra.

Cartaz do filme Otelo, da obra de William Shakespeare e direção de Kenneth Branagh (reprodução/internet)

Morgana passava noites insones ao lado de seu escolhido. Olhava-o em sono profundo e projetava em seus devaneios quais artimanhas ele estaria escondendo para não pacificar seus pressentimentos. Era movida pela intuição doentia. Uma bússola avariada que a fazia dar voltas em círculos em torno de seu coração combalido. As batidas seguiam em descompasso, levando-a por caminhos tortuosos e ermos.

O desgaste da relação, motivado por desentendimentos constantes em torno do medo de ser enganada, filtrou as cobranças. Ela silenciara. Considerou não mais aborrecê-lo com perguntas acusadoras. Antes do acordo, a ciumenta partia agressivamente em inquisições de detalhes existentes apenas em sua mente perturbada pela gelosia, como dizem os catalães, ascendentes de sua família Cardona.

Samir amava-a profundamente. Nunca a traíra. Apenas uma vez chegou em casa com um perfume feminino impregnando a camisa. Era inocente. Fora vítima do ardil feminino. Uma "zinha", como classificava Morgana, atirou-se nos braços de seu amado, mal-intencionada. Ele era um homem arrebatador. Do tipo que acendia paixões na fila do supermercado. Não era a beleza que o destacava. Apenas masculinidade sobrando por todos os poros.

Era isso que roubava-lhe a paz. Morgana estava certa do potencial sedutor de seu partner. Apaixonada até o último fio de cabelo, sabia do que ele era capaz de fazer a um miocárdio desprevenido. As amigas não a visitavam mais. Somente se Samir não estivesse em casa. A maioria foi reprimida ao ser flagrada em olhares fortuitos ao alvo de seu zelo enfermo. A descompostura afastou até as mais chegadas. Amizades forjadas na infância não resistiram à moléstia enciumada.

Às vezes, Samir era cruel. Ciente que ela não mais demonstrava os sintomas traiçoeiros em sua frente, deixava falsas pistas para medir o grau de TCI. "Esquecia" nos bolsos das calças pequenos papéis em branco. Nada escrito. Mas era o suficiente para o sinal de alerta exasperar o coração maltratado. Morgana cheirava o objeto. Olhava frente e verso várias vezes. Punha contra a luz. Queria encontrar uma pista oculta existente apenas em seus delírios. Uma mensagem cifrada, talvez. Como era sofrida.

"Ciúme em dose leve, tempera a relação." (reprodução/internet)

As senhas compartilhadas das redes sociais, telefones e outros aparelhos faziam parte do pacto de confiança imposto por ela. Ainda assim, não se dava por contente. Supunha que Samir apagasse os recados antes de chegar em casa. Dava incertas no escritório do arquiteto para pegar o celular e vasculhá-lo em busca de fotos e outros possíveis vestígios que sanasse o desejo de saber o que não queria. Tudo em vão.

A amante era ela. Exclusivamente. A dedicação a mantinha cada vez mais criativa. O leito era aquecido com novidades. Sempre havia algo a surpreender o bem amado. Novas técnicas para prolongar o prazer. Comidinhas afrodisíacas renovavam o cardápio e roupas insinuantes incendiavam a relação. Morgana era bela. A balzaquiana mantinha uma silhueta inspiradora. Pele, cabelos, mãos e pés irretocáveis. Cuidava-se detalhadamente. Não dava oportunidade ao azar.

Mas tudo tem limite. Certa vez, Samir a pegou com a mão no ralo de seu banheiro privativo do trabalho. Ajoelhada no box, a caliente esposa recolhia tufos de cabelos. Comparava-os entre os dedos, selecionando fio a fio para encontrar algum que não fosse o dele. Foi a gota d'água. 

O Transtorno do Ciúme Iminente era humilhante. Furtara seu brio. Assaltara sua dignidade. Do monstro que criara por dentro, sobrara a casca de uma linda mulher. O amor é um espetáculo como o nascer do sol. A paixão arde como fogo em uma noite sem lua. Mas o ciúme corrói como ácido sulfúrico, devorando tudo o que encontra pela frente. Como dizia Alceu Valença em "Romance da Bela Inês": "O ciúme é a véspera do fracasso. O fracasso provoca o desamor."

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