Aplausos intensos ao mestre e doutor Rubens Lima

Muitos textos ainda vão ser escritos em memória de Rubens Lima, o médico psiquiatra, o dramaturgo, o cantor. Despretensiosamente, também quero deixar umas palavras tentando compreender sua importância para a arte e a cultura mafrense. Nem de longe pretendo construir algo que traga da sua biografia a dimensão de seu legado como agente cultural. Creio que ainda vamos levar um bom tempo para entender isto totalmente.

Há algo bem mais forte a revelar de sua essência, que trafegou em caminhos vários da arte piauiense. Muitas vezes, menos como agente, embora tenha sido assim que tenha se projetado, mas, especialmente, mais como esteio e orientador de muitos outros artistas. Um porto seguro onde sempre poderia se recorrer, seja pela consulta informal de males que afligissem o corpo e a alma e, principalmente, como norteador de caminhos no tráfego de construção artística.

Para ser porto é preciso ser sólido, mas, leve

Era da natureza de Lima a busca pela fonte. Ir de encontro à raiz que segurava tudo o mais que houvesse por cima. A clareza das coisas como produto da compreensão do todo a que se dedicava era evidente, para poder se aferir, se referir e ser referência. Uma certeza cristalina de alguém que estudou com profundidade a essência das coisas, desmistificando-as e traduzindo em suas mínimas partes para certificar a grandeza do real e imenso quebra-cabeças da vida, tornando-a simples.  

William Shakespeare, referencial do artista Rubens Lima (reprodução/internet)

Rubens, ouso dizer, procurou existir despropositadamente, enquanto artista, e esse era o fundamento intenso de sua poesia como viajor da nau chamada vida. O prazer de estar, sempre foi mais forte que a busca da sensação de ter ou ser alguma coisa ou alguém. No mínimo, concorre com a notável leveza de sua presença, formatando o porto onde outros navegantes vinham trazer seus veleiros em segurança como guarida, para refazerem-se e seguir seus trajetos mar adentro.   

De Melodia a Porter

Desde adolescente acompanho a carreira musical de Lima. E lá se vão mais de trinta anos. Sobre sua atividade como dramaturgo, pouco conheci. Embora tenha observado que sua ligação com os fazedores de teatro sempre tenha sido muito estreita. Da presença em ensaios e avant-premières de montagens cenográficas e uma sólida amizade com outros grandes artistas das cênicas, como José da Providência, e Arimatan Martins, que também foi seu pupilo. 

Uma coisa que me chamou a atenção da primeira vez que fui em sua casa, no Centro da capital, há mais vinte anos, foi a destacada presença dos três volumes que compõem a obra completa de William Shakespeare, na versão erudita. A notória encadernação em capa verde e papel de bíblia, da editora Nova Aguilar. Uma pista clara da importância do autor, que a mim é testificadora dos estudiosos. E quando é algo que vem embalado na versão luxuosa, mais ainda. Aí só os amantes do gênio se dão ao desfrute. Poucas vezes encontrei pessoas que possuíssem e conhecessem, de fato, a obra, e nesta versão, em especial, menos ainda. 

Talvez uma ponte de sua ligação com outro gigante, Cole Porter. O compositor norte-americano que deixou grandes standards do cancioneiro yankee. Porter também tinha uma relação estreita com a obra do britânico mago dos sonetos e peças teatrais. Da qual se serviu para compor e trazer às suas letras a intenção e a intensidade da busca em conhecer a alma humana, com seus desejos, suas frustrações, seus sonhos e uma vida norteada pela paixão de viver. É por aí que se fortaleceu a empatia, suponho.

Mas, bem antes de Porter tornar-se objeto de busca e formatação de produto artístico na carreira de Lima, sempre o relacionei com Luiz Melodia. A primeira vez que o vi cantando foi uma bela composição do Negro Gato. A música "Só" (vídeo abaixo) é e sempre será a cara de Rubens, pelo menos para mim. Creio que ele selecionava seu repertório com algo que o envolvia bem mais que a beleza harmônica, de letra, mas de algo bem mais forte. A relação de Lima sempre foi de reconhecimento de alma com a arte e obra que se envolvia e deixava-se envolver, como todo grande artista.   


Arte na alma

Mesmo que ainda não entendesse, em minha tenra juventude, o mecanismo de busca do artista em trazer à tona o sentimento contido em uma obra artística, eu já sentia e pressentia quem se fazia grande com esta capacidade ímpar, mesmo que intuitivamente. O que é mais significante e vigoroso na trajetória de Rubens, para mim, é justamente esta capacidade e busca de uma vida toda. Lima sempre se ocupou de por alma em tudo o que cantava. Ele não pretendia fazer algo meramente técnico, também sim, mas, essencialmente, algo que pudesse ir de encontro a outras almas que lhe dessem atenção, numa transmissão direta. 

A verdade de seu canto estava aí. Por isso conseguia extrair tão fortemente a capacidade de encantar sua plateia, mesmo que o índice técnico não fosse recorrentemente superior. É como tirar o máximo do mínimo com o menor esforço e revelando tudo o que é grandioso. Estive muitas vezes entre os que, boquiabertos, foram vitimados pela impressionante capacidade e potente força metafísica de transferir na modulação, a mágica da mensagem com a essência do sentimento nela contida. Isto é só para os grandes, que trazem a arte na alma. 

Como dizia Porter, através da música onde encontrava maior identificação entre Lima e ele: "I've got you under my skin. I've got you deep in the heart of me. So deep in my heart, that you're really a part of me." À flor da pele, era essa a intensidade de suas intervenções no campo artístico. Olhar para Lima é não vê-lo totalmente, porque a profundidade em que se pôs é bem maior do que aparenta e está além do que podemos enxergar. E aqui não pretendo mais adentrar em sua grandeza. Como produto resultante de tudo o que um artista realmente quer, apenas reconheço sua envergadura e o aplaudo, intensamente. 


Precoce partida

Vasculhei a internet em busca de vídeos, principalmente, que pudessem comprovar muito do que procurei defender acima, mas, infelizmente, ainda não tem upado. Entretanto, creio que há muita coisa gravada. E, quem sabe, logo logo, alguém vai nos dar este benefício. Deixando disponível o legado de Lima, em parte. 

Aos 64 anos, Rubens partiu para uma nova jornada. Após enfrentar durante cerca de cinco anos as dificuldades com as limitações de um corpo que não correspondia mais à grandeza da alma. Para os dias de hoje, muito precocemente. A consciência que tinha do todo, também me faz crer que está contida uma velada escolha, que devemos respeitar, pois ele sabia o que estava fazendo.

Sempre lembrarei dele como alguém que deu um toque, quando solicitado. Que, por iniciativa, também orientava sem nenhuma pretensão professoral, compartilhando humildemente seu conhecimento. E de mais forte, o olhar sagaz e ao mesmo tempo terno das coisas e das pessoas. Algo aparentemente díspare, nele era harmonizado através do bom humor e de uma risada retumbante e contagiante. Vai em paz, mestre Doutor Rubens! 

Uma das últimas fotos de Rubens Lima cantando em público (Maneco Nascimento)

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