À frente de seu tempo

A expressão curiosa não diz muito. Ou melhor, esconde muita coisa. Conhece alguém que vive no futuro? Porque se está à frente, só pode ser em um tempo futuro, não é?

Ninguém vive no futuro. E todos deveríamos viver no presente. Aí é onde está todo o problema. A maior parte das pessoas vive no passado. Talvez seja o princípio dos maiores males contemporâneos da humanidade: a depressão. Ou excesso de passado.

Quando não é alguma descompensação química corporal, a depressão é a nostalgia supervalorizada. A dificuldade de estar em dia com as mudanças permanentes. A evolução natural das coisas e das pessoas está em ir para frente e não para trás. Mas, grande parte da humanidade teima em resistir às mudanças e recua diante do que deveria avançar.

Muita gente tira proveito desta tendência dos seres humanos viverem olhando para trás e alimenta o conservadorismo como forma de manutenção de poder ou de controle social. Se dependesse de alguns, o transporte ainda seria as carroças impulsionadas a tração animal.

Por sinal, ainda tem gente que vive assim em alguns lugares. E não é pela falta de acesso a automóveis, por baixo poder aquisitivo nem por consciência ambiental de menos emissão de carbono, mas, por opção. A escolha de viver em um passado. Parece que pararam no tempo. O tempo não espera por ninguém. Está sempre de ida e o novo sempre vem.

Sociedade acelerada

A conjuntura social atual, com o nivelamento da informação e o apuro da tecnologia, trava uma guerra onde põe em xeque os costumes e os valores morais arraigados por uma sociedade cada vez mais distante de seu presente. Uma luta desigual de uma pequena parcela que está em dia com os avanços e a grande maioria que defende com unhas e dentes o que não se sustenta mais.

Cito duas que todos têm conhecimento e estão na pauta do dia a dia: o debate da constituição da família “moderna” e a amplitude da visão à livre orientação sexual. Duas cismas que promovem polêmicas diariamente e tomam parte da vida das pessoas em debates acalorados e disputas por espaço, atenção e prioridades legislativas.

As políticas afirmativas, quando não agressivas, cerram um enfrentamento por meio da iconoclastia e recebem em troca um torrencial contra-ataque dos que se sentem aviltados. Como podemos referir o caso da simulação de crucificação de uma transgênero na recente passeata LGBT em São Paulo, em 7 de junho.

No dias de hoje, quando tudo ganha volume em questão de segundos, um fato com imagem bem construída preencheu as redes sociais e rapidamente o interesse da população. Craques em divulgar, mobilizar e promover discussões na social media, os ativistas da livre orientação sexual lançaram o pomo da discórdia no seio do cristianismo. Uma bomba que explodiu a ira dos religiosos e traz consequências de uma óbvia resistência.

É apenas um exemplo de como a sociedade acelerada pelo protagonismo da comunicação em coalizão com o acesso aos dispositivos móveis e seus widgets pode avolumar uma questão e, nem por isso, significa avanço propriamente eficaz e prático. Neste caso, recrudesceu a resistência, rachou o próprio movimento e dificultou o diálogo.

O futurologista, o visionário e o profeta

Há quem se desdobra em enxergar o futuro diante dos sinais que apresenta o presente. Fazem o exercício da previsibilidade. Qualidade rara de quem consegue ter uma visão de horizonte profundo proporcionado pelo conhecimento. Os futurologistas fundamentam suas observações na vivência e know how de um olhar treinado pela sensibilidade de visualizar as coisas com lentes especiais.

Já o visionário se antecipa ao futurologista e prepara o porvir com ações espetaculares para recebê-lo confortavelmente, projetando e materializando o amanhã. Criaturas cada vez mais raras neste mundo one way e do imediatismo. Grandes políticos que têm compromisso com o seu povo se encaixam no exemplo. Juscelino Kubitschek e Alberto Silva ilustram emblematicamente em nível nacional e estadual, respectivamente.

O profeta, com os seus vaticínios, afirma categoricamente o que vai acontecer. Em conexão com o divino, antecipam os ditames do onisciente. Parece que ficaram num passado distante. Até porque não há mais a preocupação de estar em profunda comunhão com o todo poderoso ou talvez os seus escolhidos arautos não se fazem mais necessários.

Enfim, cito modelos para reforçar a minha tese de que ninguém está à frente de seu tempo. Afora situações práticas ou divinais, nos põe com a visão ao futuro e não vivendo nele propriamente dito, nem muito menos confundindo-os com os vanguardistas, outsiders e reformadores, que não se adequam a ordem vigente e, geralmente, são execrados por quem se diz “normal”.

A sociedade taxa facilmente aqueles que levam a lanterna no front dos passos da humanidade e cabe-lhes, por falta de compreensão, a pecha de loucos. Mas são justamente estes que não se encaixam na “normalidade” que adiantam os caminhos indolentes dos que teimam em apegar-se a um passado bolorento.

Afinal, as pessoas se anulam para parecerem iguais umas às outras e perdem grande parte de sua autenticidade. Quem busca uma identidade é tido como insurgente, conflituoso ou complicado, para ser mais rasteiro. A ordem contumaz é todos iguais e nivelados por baixo.

O espectro que resta para “ser o que realmente é” é mínimo. As convenções sociais determinam o ditame normalizado, proliferam os parvos úteis e preconizam os ineptos funcionais. Manter e ampliar o senso comum é de interesse de quem manda porque é mais cômodo manipular quem não questiona ou é previsível.

Artistas, o supra sumo da raça humana

Aos que escapam dos diagnósticos psiquiátricos ou da incriminação política, práticas vetustas e banais dos detentores do poder autoritário, resta a arte. Aí é onde está o melhor caminho para professar uma identidade evidente e salientar a aceitabilidade, arrancando aplausos dos mesmos que usam as mãos para apontar o dedo.

Embora o conceito de artista esteja bem amplo atualmente, refiro-me aos que são capazes de construir o que não sai em escala industrial, em desavença com uma manufatura consumista de entretenimento. É outra coisa bem genuína e não a cópia reproduzida por diluidores, como bem classifica Pound.

Falo de Goethe, Bosch, Van Gogh, Modigliani, Paganini, Schiller, Mozart, Claudel, Genet, Stravinski, Artaud, Rimbaud, Baudelaire, Dalí, Oswald e tantos outros mais que romperam as amarras e erigiram obras extraordinárias, obrigando a claque ao reconhecimento de sua contribuição construtiva, independente e originalíssima.

Quando não viveram anonimamente, foram ditos malditos em sua época. O que apenas auxilia a verificação da certeza de que estavam no caminho certo de sua contemporaneidade. Em dia com as respostas para o seu tempo, mas que só foram possíveis ser enxergadas bem depois. Hoje estão aí louvados e incensados como gênios da raça.

Os lídimos artistas reúnem a capacidade de dialogar com o passado ilesos de suas teias, referenciando o que é universal e será sempre contemporâneo, lançando ao futuro o artefato atemporal. A arte genuína transborda uma realidade de sempre. Quando vista, lida ou ouvida nos remete à alma do mundo, emocionando até os simplórios.

Libertos da ditadura de Cronos, percorrem sua trajetória desvinculados dos grilhões que prendem a uma realidade consuetudinária forçada a se estabelecer pelo obscurantismo. Os artistas têm luz própria e são generosos quando nos dão a oportunidade de esclarecer e clarear com suas obras, deixando à história um legado de brilhantismo só meritório aos estetas.

O beneplácito de viver o presente

A intricada arte de viver a trama de uma vida no presente é para poucos que se dão ao deleite de transgredir a mediocridade. A ordem é não ser ordinário e faturar o dispêndio que lhes torne prezado, desassociando-se das highways para enveredar-se pelas vielas, pelos túneis e estreitas vias sem atalhos. Quase sempre solitários, ermitões, monges e sacerdotes de seu re ligare.

Estar aqui e agora, exercendo o presente com toda a sua intensidade é que faz com que a falta de conceituação imponha o expediente do uso da expressão “à frente de seu tempo”. Mais por falta de vocábulos que descrevam a situação do que propriamente a veracidade de não concluir um termo que confira a exatidão.

Feliz é quem encontra estes seres capazes de estarem lúcidos e em harmonia com o seu próprio tempo. Existindo no ritmo que não pende nem para o passado e nem se emprenha com os enigmas do futuro. Liberando-se da ansiedade geradora de patologias psicossomatizadas pelo seu excesso, arrancando o sono e a paz.

Como falta capacidade de os compreender e sobram veredictos equivocados, os incautos isolam o ensejo de uma convivência iluminadora. Entretanto, outros tantos despem-se de suas indumentárias modais para dar azo às benesses de sua presença. Prezemos o presente, o regalo pertinaz de quem é realmente perspicaz. 

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