Nova "lei anticrime" permite acordos em ações de improbidade administrativa

Nem só de crimes tratou a lei apelidada pelo governo de “pacote anticrime”. Sancionada na quarta-feira (25/12), a Lei 13.964/2019 também mexeu na Lei de Improbidade Administrativa para criar o “acordo de não persecução cível” em ações do tipo. Agora, o parágrafo 1º do artigo 17 da lei, que proibia transações com ações de improbidade, diz: “As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta lei”.

Ou seja, agora há autorização expressa para que tanto o Ministério Público quanto os entes lesados por atos de improbidade façam acordos com quem os cometeu.

É mais um capítulo de uma longa discussão sobre esse tipo de acordo. Em 2013, com a aprovação da Lei Anticorrupção, foi prevista a primeira possibilidade de acordo envolvendo atos de improbidade administrativa. Mas a lei diz expressamente que esses acordos, chamados de acordo de leniência, só podem ser tocados pela Controladoria-Geral da União ou suas contrapartes nos estados e municípios, a depender de regulamentação local.

Mas os procuradores da “lava jato” nunca se importaram com o texto da lei e assinaram diversos acordos de leniência com as empreiteiras investigadas na operação. A justificativa era que a Constituição dá ao MP o poder de tocar o inquérito civil e o Código de Processo Civil o autoriza a fazer acordos. E, como a Lei Anticorrupção previu o acordo de leniência, o MP ficou implicitamente autorizado.

Era uma disputa por protagonismo camuflado de combate à corrupção: em fevereiro de 2015, o Tribunal de Contas da União aprovou a Instrução Normativa 74, dando a si próprio o poder de fiscalizar os acordos assinados entre empresas e MP. E diversos deles foram devolvidos para renegociação. O argumento era de que a multa estipulada era insuficiente para ressarcir os danos causados.

Já em seus últimos momentos, o governo Dilma Rousseff tentou esclarecer melhor a questão e editou a Medida Provisória 703, em dezembro de 2015. A MP alterava justamente o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade para autorizar a transação. E dizia que os acordos de leniência podiam ser negociados diretamente com a União e com os entes lesados ou em conjunto com o Ministério Público e com a advocacia pública.

Ou seja, o MP não poderia fazer acordos isolados com empresas e o TCU sequer podia dar opinião sobre o assunto. Em abril de 2017, a Procuradoria-Geral da República abriu inquérito para investigar as negociações que levaram o governo a editar uma MP que restringia poderes do Ministério Público – a nova “lei anticrime” chegou a prever que só o MP poderia fazer os acordos de não persecução cível”, mas os artigos foram vetados por “contrariar o interesse público”.

Questão constitucional
Por isso, a lei está sendo bem vista pelos especialistas na área. O advogado Rafael Carneiro, por exemplo, considera “louvável” a iniciativa. “Foi um avanço significativo. "O acordo era das poucas pautas defendidas por todos os envolvidos no debate sobre o assunto”, afirma.

Ele menciona o anteprojeto de reforma da Lei de Improbidade escrito por um grupo de juristas montado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e presidido pelo ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça. Uma das propostas do grupo era, justamente, um “acordo de não persecução cível” que autorizasse a transação com atos de improbidade — o anteprojeto foi protocolado pelo deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP) e recebeu o número de 10.887/2018.

Na opinião do advogado, a proibição dos acordos é inconstitucional. Ele é signatário de uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo PTB ao Supremo Tribunal Federal para defender a tese. Segundo a ação, a vedação ao acordo viola o princípio da eficiência, porque “impede que os litígios judiciais possam ser solucionados de forma célere, acarretando um duplo prejuízo ao erário, tanto pelo aumento de gastos com a tramitação demorada do processo judicial, quanto pela demora na restituição de valores públicos indevidamente desviados”.

A ação agora deve perder objeto, “mas por um bom motivo”, comenta Rafael Carneiro.

Passo modesto
O advogado Sebastião Tojal também elogia a medida. Mas mais por ela ter dado segurança jurídica ao tema do que pelos avanços. Segundo ele, os acordos em matéria de improbidade já vinham sendo autorizados pela jurisprudência e por isso “veio em boa hora” a previsão legal. “Mas é preciso ir além”, diz.

Para Tojal, é necessário agora um trabalho legislativo de sistematização do tema. O problema, analisa o advogado, é que a Lei Anticorrupção também prevê um acordo com empresas envolvidas em atos de improbidade, mas o nome é “acordo de leniência”.

“Como esses institutos conversam entre si? A empresa vai fazer dois acordos, um de leniência com o Ministério Público e outro, de ‘não persecução cível’ com a União ou com a advocacia pública? E dois acordos envolvendo os mesmos fatos? Não faz sentido”, afirma Tojal. “Do jeito que estão as redações legislativas, é razoável que a empresa se faça a seguinte pergunta: e eu? Um acordo só não basta?”

Tojal fala por experiência. Ele representou a construtora UTC nas negociações que culminaram no primeiro acordo de leniência fechado com a Controladoria-Geral da União, na forma descrita na Lei Anticorrupção. As negociações duraram dois anos, e muito por causa da disputa por holofotes das diversas instituições envolvidas no assunto, conforme contou em entrevista exclusiva à ConJur.

Por isso ele defende que se crie um “sistema de leniência” que harmonize a legislação sobre o assunto. “Houve avanço? Houve. Mas é preciso ir além, porque essas leis estão produzindo um bis in idem”, afirma.

Sinônimos
Já o advogado Igor Tamasauskas, que também representou empresas em suas negociações com a “lava jato”, é mais cético. “A previsão em lei vai quebrar a pouca resistência que ainda havia aos acordos, mas não vai ter muitos efeitos práticos”, afirma.

Segundo ele, a redação antiga do parágrafo 1º do artigo 17 já havia sido “derrogada” pela prática. Tanto a Lei Anticorrupção quanto a Lei de Mediação já permitiam acordos e nenhuma delas fazia qualquer restrição às ações de improbidade.

O problema, diz Tamasauskas, é que a nova lei deu mais um nome ao mesmo instituto. A Lei Anticorrupção fala em “acordo de leniência”; a Lei de Mediação fala em “autocomposição”; e agora o “pacote anticrime” criou o “acordo de não persecução cível”.

“Na prática, deu mais um componente de confusão, porque é mais um nome a um assunto que já é tratado de forma tangencial por outras leis. Isso só mostra a resistência do legislador brasileiro em debater o tema”, analisa o advogado. “Esse tema merece uma reflexão legislativa mais bem feita.”


FONTE: Com informações da Assessoria

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