Crônica de um dia qualquer com café

Há tempos não fazia um exercício que já foi mais comum. Tirar uma manhã e assistir a vida passar em seu ritmo mais humano. Na praça, sentado em um banco, sozinho ou jogando conversa fora com o picolezeiro, apreciando os seres em suas demandas cotidianas.

Mas é necessário um bom grau de mimetismo para fazer parte da paisagem sem destoar. Roupas simples. Um velho bermudão, uma camiseta surrada e um par de chinelos compõem o figurino camuflado de comum e insuspeito dia a dia. Somado a um acessório para chamar menos atenção ainda: sacola plástica verde de mercado com um trio de atas, para neutralizar um pouco mais a imagem.

Na praça Marechal Deodoro ou praça da Bandeira, a vida está em fervura às 9h. Transeuntes se esbarram em volume cada vez maior. Saem em tropas de ônibus que fizeram a ponte com o subúrbio de uma cidade horizontalizada. Viagens de quase uma hora despejam criaturas nas ruas, que têm urgência em resolver seus assuntos. Mas pra onde vai toda essa gente? Por que têm pressa?

Uma jovem senhora, grávida, vem subindo a rampa da praça para o centro comercial. Puxa pela mão direita um garotinho que não passa dos 4 aninhos. Ele olha insistentemente para trás, encantado com os endêmicos pombos. Quem sabe a servir de vetor de endemias. A mãe tem outras prioridades, não vai dar pra deixar o menino correr atrás das aves que esvoaçam com as vãs tentativas de crianças em pegá-las.

O molequinho tem os olhos brilhando, talvez uma ponta de inveja da menina que corre de braços abertos entre os alados, que ensaiam coreografias com curvas feitas em conjunto. Um voo sincronizado na liberdade de não ter compromissos a cumprir. É apenas mais um dia para escapar dos infantes, que nunca desistem, e comer milho jogados aos quilos pela população mais generosa.

Uma coroa vistosa chega sorridente. Dentes muito brancos em uma bela arcada. Calça apertada e uma camiseta mínima mostrando a barriguinha e os detalhes do sutiã vermelho. Senta ao lado com sua bolsa sempre bem segura por uma das mãos, protegendo algo que deve carregar de valor.

A mulher do cafezinho passa em ritmo acelerado. Nem dá conta da minha recente “amiga” que está jogando charme em uma tentativa de conquista, por enquanto, com os olhos. A jovem senhora do café leva duas garrafas em cada mão. Quem sabe tem algum cliente aguardando. São tantos prédios, tantas lojas.

A morena quebra o silêncio e pergunta: “Ei, vamos banhar?” Para os incautos, pode parecer um convite sem sentido. Banhar no rio? Pouco provável. As águas barrentas e a poluição despejada sem tratamento eliminam a opção. É um convite que traz bem mais que um banho. Creio que há poesia na proposta. Pelo menos na forma como é feita.

Como outras que é fácil reconhecer, trata-se de uma garota de programa. Ou melhor, uma coroa de programa. São muitas que oferecem seus préstimos, especialmente a homens de meia idade que vêm ao Centro papear com os amigos ou pegar sua aposentadoria. Homens que não vão dar muito trabalho a elas. Minha barba e cabelos brancos deve ter ajudado a confundí-la.

Mal sabe ela que suas “concorrentes” deixaram as ruas há tempos. Pelas redes sociais, com seus perfis fakes, ganham a vida com o mínimo de exposição, frequentam as melhores boates, estudam em faculdades caras e ostentam suas bolsas e sapatos de marcas importadas, comprados com o resultado de suas prestações de serviços sexuais, cobrando dez vezes mais por um encontro com horário marcado e tempo estipulado.

Para ter certeza, pergunto o valor do programa. Ela responde sorrindo, talvez animada pela possibilidade de garantir o do almoço. “É só 20 reais!” Agradeço e levanto. Peço desculpas por não poder aceitar. Digo que tenho uma conta vencida a pagar e está na hora de ir ao banco. Quem sabe outra vez. Ela sorri.

Sigo para a praça Rio Branco. Passo ao lado da matriz. Nossa Senhora do Amparo tem ao seu redor os filhos mais indigentes. No adro, acontece uma convenção de engraxates. Estão sentados sobre suas caixas. Parecem combinar algo animadamente. Quem sabe uma compra de crack em conjunto, pode render mais. Esquálidos jovens com futuro magro, roupas em frangalhos e sujas são o figurino que se repete.

Um pequeno trecho menos cáustico entre a igreja e o prédio da Receita Federal, flores e floristas alegram com cores e sorrisos. Remédio que faz bem à alma e não precisa de prescrição médica nem orações mais fervorosas. Que nada! Quase não dá pra sentir o perfume das flores. A ureia sobrepõe-se. As paredes da igreja servem como urinóis públicos para os filhos menos religiosos de...Nossa Senhora!

Apresso o passo e a praça do barão se abre. Também é conhecida como praça do relógio. Está lá no alto de uma torre apenas vendo o tempo passar. Mas parado, até um relógio está certo duas vezes por dia. Houve uma tentativa de revitalização, mas o tempo para manutenção não foi levado em conta. O tempo passa. Não espera por ninguém. Muito menos do poder público que sempre parece mais lento do que é para tomar decisões.

Um jovem casal aperta-se e beija-se vestido em fardas de colégios diferentes. Uma aula de campo (ou de praça) de matéria que não está no ementário pode ser menos chata, mas não garante boa nota no fim do mês. Foi-se o tempo em que o bedel passeava pelas ruas em busca dos menos afeitos a estar na sala de aula. Os cadernos estão esquecidos no banco que é dividido com um senhora bem idosa a degustar um “dindin” avermelhado. Deve ser acerola ou goiaba, suponho.

Na praça também tem jogo. Aposentados jogam damas, silenciosamente. Taxistas jogam cartas, falantemente. Ambos exibem bonés estilosos. O passatempo diverte os ativos e inativos. Uns aguardam clientes. Outros são clientes do tempo. Têm tempo de sobra para esperar tudo passar sem pressa. Tudo passa.

E vem passando uma loura sestrosa em sua minissaia generosa para as longas pernas. Todos olham. Ativos e inativos. Jogadores e transeuntes viram-se para ver o desfile. Ela finge que não vê que tornou-se atração. Também recebe olhares menos admirados. Outras que não têm o mesmo elã flecham olhares de reprovação. Ela segue impávida com as madeixas esvoaçantes até misturar-se com o volume de gente que se espreme no calçadão.

Moças de jeans e tênis oferecem chips de celulares com promoções inacreditáveis. As vozes repetem a mesma oferta, mudando apenas o nome da operadora que se vê nas camisetas. Parecem cansadas. Desanimadas. O que pouco ajuda na conquista de novos clientes. Todos ouvem, mas quase nenhum dá ouvidos aos apelos e seguem seus caminhos desligados.

Mais adiante, um homem costura uma bola. Sobe um cheiro de cola. A benzina que incomoda os menos afeitos, passa direto pelas narinas do costureiro de pelota. Um homem imponente lê jornal em uma cadeira alta. Parece um lord perdido nos trópicos. O engraxate de cabelos brancos já deve ter perdido a conta de quantos sapatos saíram brilhando com a habilidade de suas mãos sujas de graxa.

A moça do café passa novamente, em sentido oposto, deve seguir para a praça onde possam ter clientes. O mesmo passo acelerado. Ainda não a vi vendendo nenhum cafezinho. Será que ela trabalha mesmo com isso ou é apenas um disfarce de outro negócio? Resolvo seguir à distância. Estou curioso do que ela realmente serve.

Na esquina do hotel, “xis com” a igreja (que já foi supermercado) vende-se e compra-se ouro. A banquinha humilde – mesa, cadeira e um homem franzino – estimula pouco o negócio, mas, vai que funciona mesmo e a gente nem se dá conta que ouro é vendido e comprado na calçada, quase no meio de uma rua movimentada.

A moça do café segue na frente. Não olha para trás. As garrafas parecem leve. Talvez não tenha mais café. Talvez já tenha vendido tudo. Quem é que quer café às 11h? Ela desce a praça da Bandeira (que já foi zoológico) por um dos caminhos que cortam pelo meio do logradouro. Sai apressadamente pelo portão um pouco depois da frente do Palácio da Cidade (que já foi a Escola Normal).

Passo pelo corredor dos celulares. Do mais simples “lanterninha” ao mais sofisticado modelo de marcas que passam na TV, encontra-se com facilidade. Alguns têm nota fiscal. Mas a maioria dos compradores não pedem este requisito de garantia, geralmente. A informalidade é aquecida com vários vendedores de ocasião. Com suas mochilas, têm aparelhos de todos os tipos e preços. O cliente é quem manda. Também aceitam encomendas.

Alguns fiscais da prefeitura andam calmamente entre eles. Talvez hoje não seja dia da rigidez ao comércio informal. Há dias em que eles estão assustados. Sempre olhando a aproximação de supostos repressores e prontos para sair em retirada com toda a força das pernas. Mas isso não é sempre. Mais moças que vendem chips de operadoras oferecem seus produtos com a mesma voz anasalada. Dá até pra pensar que é mensagem gravada e repetida em looping.

Acabei perdendo a moça do café, distraído com alguns modelos de celular que nunca vi nem nas melhores lojas. Lá vai ela quase chegando ao Troca-Troca. Ainda nem atravessei a avenida Maranhão e ela se misturou aos vendedores de tudo e mais alguma coisa. A feira que se encontra produtos novos, seminovos e usados, com e sem nota fiscal, está em polvorosa.

Na calçada, lanço a vista em uma panorâmica por entre as bancas da feira livre, mas ela desapareceu. Deve estar por ali. Tem que estar. Talvez agachada entre uma banca e outra. Será que ela percebeu que eu a estava seguindo? Resolvo ir para a sessão de bicicletas, aguardar para ver se ela reaparece. E haja bike. Da mesma forma que os celulares na praça, bicicletas para todos os gostos. Dos modelos mais antigos, alguns com quase 40 anos de fabricação até os tipos mais recentes, feitas de alumínio, um monte de marchas e amortecedor.

Mudei o ângulo, mas ainda não consegui localizar a garota do café. Deixa pra lá. Atravesso a avenida Maranhão em meio aos ônibus que vão para a zona sul. O “Porto Alegre/Mocambinho” está lotado, como sempre. O “Saci via Barão” passou quase vazio, nem parou. Lotadas estão as vans. Os mototaxistas brincam jogando água uns nos outros enquanto aguardam uma corrida.

Quando vou subindo a calçada do Shopping dos Camelôs, adivinha quem passa por mim? Justamente ela. A moça do café. Só que desta vez com o passo mais acelerado ainda. Ela entra pelo meio do shopping, alguém pede café e ela apenas sinaliza com o polegar para baixo. E eu pensando que ela tinha ido reabastecer as garrafas de café no Troca-Troca.

As mulheres da castanha anunciam seus produtos em voz alta, oferecendo uma prova para o cliente experimentar. Na escada que liga o shopping à praça, mais celulares segurados em uma mão só. Como se fossem cartas de azar, são postados em três, quatro, dependendo do tamanho da mão do vendedor. Pode não ser boa sorte pegar este descarte.

A mulher do café já vai no meio da praça e eu tentando me desvencilhar dos obstáculos da tecnologia furtiva. Quando consigo chegar ao meio da praça da Bandeira, ela já está passando ao lado da matriz. Por que tanta pressa? Na Rio Branco, vejo-a entrando em uma pequena loja que vende “de um tudo”, em uma rua lateral da praça. Quando chego na frente da loja, ela já vem saindo. Resolvo aguardar. Ela vai voltar.

Os ônibus descem enlouquecidos a Areolino de Abreu. Quem quiser que se segure. Passam tirando “fino” dos caminhantes que cruzam em direção à praça. Um par de PMs caminha conversando distraidamente. No canto da agência da Caixa, uma ceguinha emboladeira solta seus repentes. Das desventuras de um casal a palavras de esperança, tudo é mote para as moedas que vão se somando na latinha, tilintando e fazendo a artista cantar com mais força.

A Rua Climatizada está com a temperatura amena, graças às lojas refrigeradas que jogam o ar resfriado de suas portas escancaradas. Folhetos pelo chão fazem jus ao trabalho dos garis, mas as promessas da vidente não previram que a rua ia ficar suja com a garantia de trazer o amor de volta em três dias. Aposto que os varredores de rua não botam fé nas juras da nigromante.

Cadê a moça do café que não volta mais? Será que terminou o turno? Tá “meidiinha”. Lá vem ela com suas quatro garrafas de café. Uma de cada cor. Verde, azul, vermelha e preta – o que trazem em seu interior? Jornalista adora um mistério e não descansa enquanto não descobre a razão do enigma. Disfarço folheando uma revista de esportes na banca, que mais vende crédito para celular. Ela passa direto para a loja de bugigangas. Suada, já deve ter caminhado uns dez quilômetros entre idas e vindas.

Do outro lado da rua, observo o movimento. Ela vai direto para o fundo da loja e desaparece por uma portinhola. Dez minutos depois, ressurge com a mesma pressa e faz o caminho de volta. Entro na loja. Um vendedor vem atender e pergunta o que estou procurando. “Coisas de casa”, respondo sem muita certeza. “Temos garrafas de café bem baratas. Conservam que é uma beleza!” – completa ele e dá a deixa para tirar a pulga de trás da orelha. Digo que estou comparando preços e agradeço a atenção.

Matei a charada. Ela não vende café coisíssima nenhuma. A mulher do café traz a parte de dentro da garrafa para a loja. Muito provavelmente sem nota, deve ser um daqueles produtos que adentram as fronteiras e driblam os tributos. O miolo da garrafa é traficado de forma insuspeita. Talvez ela não seja a única a fazer o serviço. Será que é apenas este produto? Por hoje já está de bom tamanho.

Volto com o passo lento. Ao lado, borrachas de panela de pressão, coadores de café feitos de pano e panelas de alumínio de todos os tamanhos diminuem o espaço dos transeuntes, invadindo parte da calçada. Piranhas coloridas estão expostas para cabelos de todos os tipos. Espelhos, pentes e escovas pendem para todas as belezas que circulam pelo Centro Histórico de Teresina.

Nas paradas, ônibus engolem dezenas de pessoas de uma vez só. Já passa do meio-dia e os passageiros têm fome de chegar em casa para o almoço. Os carros saem lotados de gente suada. O “Vale do Gavião via Dom Severino” não é tão esperado assim, mas o “Vila Bandeirantes via Kennedy” sai mais apertado que sardinha em lata. A água de coco disputa com a água mineral. Todos têm sede. Nuvens carregadas de chuva mostram como está “bonito pra chover”.

Orações em voz alta escapam das portas de vidro com a chegada de mais um trabalhador, que vem fazer suas preces. Na porta da imponente igreja, distribuem jornais aos caminhantes. Recebo um com a manchete que mostra a guerra declarada contra a livre orientação sexual e em favor da família tradicional. A logo de uma rede de TV está manchada e com um “x” cortando-a. Boicote. Mais um capítulo de uma novela sem fim.

Passo em frente ao Museu do Piauí (que já foi sede do governo), que está com as portas abertas para os novos verem o velho que fez a história. Dobro na esquina do prédio e entro na Rua dos Pássaros. O cheiro de ração exala fortemente. Uma mulher se aproxima e oferece café a R$ 0,50. Aceito. A garrafa é “impriau” a da loja de bugigangas. Será?

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