Cachorros nunca foram leões

O Theatro 4 de Setembro completou 121 anos e festejou com toda a pompa. Merece todas as loas pelo espaço sacro de circulação dos bens culturais mafrenses que se tornou.

Para quem milita nas artes cênicas e música, principalmente, ao produzir um novo espetáculo, se não apresentar-se no palco italiano da casa situada na antiga Praça Aquidabã, é como se não recebesse as bênçãos dos deuses e musas que erguem a arte ao patamar do encantamento.

As celebrações trouxeram à cena o que há de bom em teatro, dança, música e até literatura. Destacando o lançamento do livro de Lina do Carmo, “Corpo do Mundo”, entre as mais significativas atrações que marcaram mais um aniversário do velho Theatro.

Lina do Carmo, em noite de lançamento de seu livro (reprodução facebook Theatro 4 de Setembro)

Mas, nem tudo são flores a decorar. Dos espinhos também pode-se receber boas lições. Casos em que a expressão maktub não prevê que o que estava escrito fosse tão insipiente, dando a impressão muito mais de presunção e vaidade do que um bom serviço a lançar à posteridade um registro realmente significativo com o intuito de marcar a história do Theatro 4 de Setembro.

120 ou 121?

O livro traz em sua capa um logo muito bem elaborado pelo artista Paulo Moura, craque no design e editoração. Abaixo da marca criada pelo artista gráfico, a frase em caixa alta estimula qualquer leitor e estudioso: HISTÓRIA E IMAGENS DE UM SÍMBOLO CULTURAL.

Entre a frase e o logo, na capa, o primeiro notável equívoco. Apesar de ter completado 121 anos, a contar desde a data da famosa visita das senhoras a reivindicar a construção da casa ao governador da província, o livro estabelece o recorte de apenas 120 anos.

Mesmo subtraindo um ano, não faria muita diferença, pensa-se generosamente. Entretanto, quando avança-se à leitura é que se descobre que, com alguma boa vontade, o volume poderia retratar somente 80 anos da história do endereço mais conhecido da Praça Pedro II, em se tratando de texto.

A pretensão de historiografar os 120 anos, com exceção das fotos e da tabela com os espetáculos apresentados, que vai até o dia 8 de novembro de 2013, deixa um hiato de 40 anos, quando se revela a escritura a retratar o cotidiano de apresentações do maior ponto de circulação da arte e cultura dos piauienses.

A mais antiga fotografia do Theatro, datada possivelmente de 1905

Compilação

A repetitiva história das senhoras, por incrível que pareça, repete-se duas vezes com construção idêntica. Uma do próprio autor, Aci Campelo, que reproduz similarmente o original do Monsenhor Chaves. Dá a sensação de que é um erro grotesco de editoração.

Na verdade, é um recurso do “historiador” que compilou alguns textos ipsis litteris e os colou em seu estudo. São vários documentos inteiros a tomar páginas. A ponto de disputar com o texto do escritor. Aliás, o livro se encerra com o pronunciamento do então governador Alberto Silva, em 1975, na reinauguração da primeira grande reforma do Theatro.

E fica por isso mesmo. Não há mais uma vírgula. Nenhuma conclusão. Nada a acrescentar. Quer dizer que se formos pela capa, estaríamos comprando lebre por coelho? Ou cachorros por leões? Fato que na analogia poderia bem referendar a história de um livro cheio de vazios, nos fazendo crer que é uma coisa e é outra.

A emblemática confusão que todos fazem sobre os supostos leões que estão sobre as colunas frontais do prédio, na verdade, não passam de cachorros. Todo mundo troca, confunde, mas são realmente cães. Fato que é discorrido no livro, que pode ser tudo, menos histórico. Mas os guardiões Canis lupus familiares, amigos fiéis dos homens fazem as vezes dos míticos gárgulas a afugentar os demônios e a povoar os pesadelos dos incautos.

Porém, ninguém pode negar que o escritor não foi precavido ao escrever no terceiro parágrafo da página 21, em “Introdução a esta edição”: “Primeiro, para dizer que não procuramos rigor científico[...]”. Realmente, não se vê isto em seu interior, embora a capa contradiga presunçosamente em contrário.

“Esquecimentos”?

É um balde água gelada quando, ao final do livro, percebe-se que ficaram de fora grandes fatos marcantes. Um deles, a outra grande reforma que a casa recebeu. Nos anos 90, quando o governador era Mão Santa e o secretário de cultura era Osmar Júnior. O órgão gestor da cultura chamava-se Fundec, acumulando o esporte na mesma pasta.

A polêmica das mãos dos humoristas que marcaram por dezenas de anos suas participações no Salão de Humor do Piauí, orquestrado pelo bravo Albert Piauhy. Postadas em baixo relevo em placas de cimento e com a assinatura das figuras dos traços magistrais, foram colocadas no hall de entrada do Theatro, mas, antes da reinauguração foram arrancadas e substituídas por um painel de Antônio Amaral. Aliás, o que foi feito destas placas? Dava uma boa história a ser contada.

Outro fato importantíssimo foi o incêndio que aconteceu na cabine de som e iluminação, no final de 2001. A casa ficou funcionando apenas com 360 lugares no primeiro piso. Apesar de laudo apontando como acidental, ainda recaem suspeitas de que tenha sido criminoso.

Era um momento de transição de governo. Quando o então governador Mão Santa foi cassado e Hugo Napoleão assumiu em seu lugar. Muitos interesses contrariados fazem as teorias de conspiração sob o sinistro pegar fogo ainda nos dias de hoje.

Na galeria de fotos sobre autores piauienses, “esqueceu” de dramaturgo vitorioso como Walfrido de Melo Salmito. Desde 1979 mergulhado na cena teatral, com premiações nacionais. Dois Myriam Muniz, conferidos pelo Ministério da Cultura. Autor contemporâneo de Campelo, com quem “troca figurinhas”, é de causar espécie.

Adalmir Miranda, um dos maiores operários do teatro piauiense; o grande curinga da ribalta e do backstage; em plena atividade há cerca de 30 anos, se não fosse uma minúscula foto de sua peça “Álvaro de Campos em Pessoa”, passaria ao largo da publicação eivada pela amnésia. “Barrela”, obra luminar de Plínio Marcos, tantas vezes montada por Miranda, rendeu-lhe diversos prêmios em festivais pelo Brasil e à sua trupe. Sem falar de suas mais recentes montagens, “Palha Assada” e “Assombrações”.

Adalmir recebendo premiação como diretor por "Barrela" ao lado de Fernanda Montenegro (reprodução facebook)

Os jovens autores como Adriano Abreu, Franklin Pires e Waldílio Siso também foram ignorados. O último deles estava com uma peça premiada na programação do aniversário do Theatro. “Casimira Quietinha” foi chamada à festa, mas, o dramaturgo foi solenemente solapado da edição.

Chiquim Pereira, poderia figurar com uma foto como ator, diretor ou autor, mas, pra variar, é outro que não foi contemplado nas páginas do livro tão incensado pela mídia. Porém, se os jornalistas forem indagar o que pensam os que estão do lado de dentro do fazer teatral, não ficarão surpresos pelas sinceras impressões desaprovadoras. O grande artista é mestre na Escola de Teatro e trabalha com o autor do livro que nos faz lembrar mais dos “esquecidos”, em contraponto com os lembrados.

Siro Siris é outro grande injustiçado. Também ator, diretor e autor, mergulhou no limbo da visão míope do compêndio. Sua montagem de “O Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, é meritória de estar entre as páginas do volume comemorativo dos “120” anos do Theatro 4 de Setembro. Afora outras participações suas em montagens diversas.

A coreógrafa e bailarina, Luzia Amélia, com espetáculos de grande plasticidade, como as premiadíssimas “Calango” e “Mercado Central”, que correram o mundo, olvidada pelo autor não a faz menor. Ao contrário. Assim como diversos espetáculos que abrilhantaram de glória a sacra ribalta pelas coreografias do Balé da Cidade, sob comando de Sidh Ribeiro, como a encantadora “Fantasia Nordestina”. Ou outras sob a direção de Roberto Freitas e demais coreógrafos que comandaram a companhia com mais de duas décadas.

Calango, de Luzia Amélia (reprodução internet)

Já que não se podia esperar mais nada do texto, pelo menos nas fotografias poderia constar uma imagem da montagem de maior sucesso da peça ”Auto do Lampião no Além”, de Gomes Campos, pelo grupo Harém. E conste-se que o autor e a peça são mencionados, mas não a versão que brilhou a ponto de abrir festivais nacionais e internacionais pelo país afora na década de 90.

Nem mesmo é tocada a premiação que fez com que o teatro piauiense construísse a ponte com Portugal. O prêmio Mérito Lusófono, concedido pelo governo português a autores da língua de Camões, foi merecidamente ganho pela peça de Campos por unanimidade. Numa noite de pompa e circunstância, o embaixador de Portugal veio a Teresina entregar o prêmio no valor de 10 mil dólares, com a presença do governador do Estado, Mão Santa.

Uma verdadeira divisora e transpositora de águas é a peça pelo seu rigor estético em todos os ingredientes que compõem a montagem. Dirigida por Arimatan Martins, relegou ao Piauí um capítulo à parte à construção de um virtuoso profissionalismo na arte de encenar. Curioso é que a foto da peça é a que ilustra a capa da primeira edição do livro “História do Teatro Piauiense”, também de Aci Campelo.

Se hoje existe o Festluso, certamente a marcante montagem foi fundamental para reunir em Teresina os países que fazem teatro no idioma português. Difícil crer que não tenha sido um esquecimento seletivo, como muitos especulam nas rodas de conversas sobre o livro.

E haja artistas e suas apresentações marcantes que estão preteridos na escritura e nas fotos selecionadas. Quem faz parte deste universo artístico tem ciência que a grandeza da obra anda bem distante do que o marketing e o jornalismo estatal propalaram.

Critérios?

Ensinamentos a não cometer equívocos crassos por lapsos e falta de rigor para não derrapar na mesma incorreção do tema em tela, fizeram-me mergulhar fundo na teia para entender as filigranas que teceram o obducto libelo a Lete.

Conversando com pessoas envolvidas na confecção e investigando por conta própria afim de apurar como se deu a construção do compêndio e seus critérios, trago alguns fatos que podem iluminar o entendimento.

Para evitar maiores desgastes e preservar as fontes que forneceram informações preciosas, não vou citá-las. Seria um desserviço pelo desnecessário desconforto que iria gerar no seio da classe teatral, principalmente. Mas vamos aos fatos. Isto é o que realmente importa.

O projeto estava engavetado já a algum tempo. Fora apresentado ao diretor anterior do Theatro 4 de Setembro, que não conseguiu viabilizar a publicação. Com a casa sob nova direção, o livro foi reapresentado. De boa vontade, o atual diretor esforçou-se para que fosse publicado, levando o pleito ao gestor da Secult.

O start oficial foi sinalizado e em tempo curtíssimo deu-se a execução. Em cerca de 30 dias, um prazo deveras exíguo, aconteceu a editoração em todas as suas nuances até a impressão. Óbvio que um tempo tão mínimo concorre significativamente para desacertos. Subestimaram Cronos, o imponderável e astuto titã que não perdoa quem não o respeita.

Ao todo, o conteúdo escrito continha apenas 39 páginas. É mais do que evidente que tratava-se de uma obra rasa e sob suspeita seríssima de qualidade de pesquisa e apuração. Como pode se contar a história de um Theatro com 121 anos em apenas tão poucas páginas? Levando em conta que grande parte é de compilação de documentos oriundos do Arquivo Público, sobra ao texto original muito pouco a ser considerado relevante.

Capítulos como os dos Dramaturgos, Diretores do Theatro e as fotos foram preenchendo lacunas para dar volume, com a participação de diversas pessoas, preocupadas com o que era pouco robusto. O que dá a impressão de que trata-se de algo com semelhança ao personagem da obra de Mary Shelley. Franksteinizado, foram costuradas partes diversas avessas ao projeto original para dar corpo e densidade.

Outros fatos vou deixar ocultados para não me acusarem de ser cruel, pois seria um despropósito revelá-los dada a situação humilhante da constituição sob a qual recaem suspeitas, que fez com que alguns recebessem tantos privilégios em citações nas legendas e fotos, em detrimento de outros que foram omitidos.

Mas os critérios ou a falta deles povoam as sinapses de muita gente que está silenciosa, evitando fazer dos rumores certezas extremamente dolorosas, alimentados por melindres macróbios, dentro e fora da ribalta. Boas doses de pudor e elegância para não trazer à tona uma conjuntura intestinal que é preferível estar além da rotunda e deste texto.

O autor Aci Campelo em noite de autógrafos do livro (reprodução facebook Theatro 4 de Setembro)

Edição revista e ampliada

É difícil entender como o projeto leva a chancela do Governo do Estado. Quem é do jornalismo cultural ou milita nas artes cênicas, principalmente, fica a indagar o que levou alguém a apostar na confecção da “obra”? A incompletude é ululante. Ninguém admoestou o secretário Fábio Novo à superficialidade do conteúdo em descompasso com o que vendia seu frontispício?

Que esta “falta de memória” sirva para motivar uma revisão profunda na obra. Fazendo o justaposto desta, que ainda será distribuída aos órgãos públicos e bibliotecas do Estado. Seria mesmo necessária uma distribuição maciça e incorrer na maximização do equívoco com algo de teor tão simplificado que pode até ser deseducador?

De já imploro ao secretário de Cultura, tão sensível às causas dos artistas, que permita-se a cogitar a possibilidade de uma nova edição revista e ampliada. Com textos de autores diversos. Quem sabe crônicas de diversos fatos e episódios marcantes da história recente do Theatro 4 de Setembro pudessem estar contidas a somar às vetustas?

Quem sabe até propusesse um concurso para fazer uma obra colaborativa, tirando a responsabilidade das costas de uma só pessoa sem a devida perícia para fazê-lo. Ou então entregá-la a ser confeccionada tecnicamente e por quem tenha realmente a capacitação a altura de uma obra histórica.

É certo que a que está posta não representa a grandeza e nem traz à população o quanto o Theatro 4 de Setembro já abrigou em seu palco espetáculos tão majestosos. Muito menos pode se confundir que a história dourada da casa possa estar pendendo mais a uma vertente artística em prejuízo das demais.

Ao autor, reconheça-se seu trabalho de pesquisa ao doar seu tempo às consultas. O dispêndio não será em vão, adicionando-se a tantas outras abordagens pertinentes que ficaram de fora nesta edição, possam provocar caminhos e ser fermento para fazer crescer honestamente o bolo desta história tão magnificente.

Distantes de uma visão tacanha e estreita, temos que ampliar e alongar a vista a outrora sem antolhos e com critérios mais inclusivos. Temos que enxergar a história da arte que trafegou o palco do Theatro 4 de Setembro sem a crítica estética, que é abstrata. E sim com a impessoalidade e a imparcialidade, que são mais justas historicamente. Um olhar holístico, contemplando todas as musas que inspiram artistas a praticar suas proezas de encantarias dignas dos aplausos efusivos de uma plateia embevecida.

Secretário de Cultura, deputado Fábio Novo

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