A oitiva de Medeia

O mito Medeia destilou suas agruras pelo tablado do Theatro 4 de Setembro na noite desta terça-feira, 4. A atriz Silmara Silva trouxe à encenação a possibilidade de ver um lado até então não acessível da mulher que praticou o filicídio e, logicamente, sofreu a condenação universal.

No entanto, pouco ou nada se permite um olhar sobre as motivações menos evidentes da personagem de cometer tamanha barbárie. É usual o veredicto cabal sem ao menos uma simples oitiva da suposta criminosa.

A encenação passa-se nos momentos que antecedem a tragédia que fez com que Medeia tirasse a vida de seus dois filhos com Jasão. Toda a angústia é evocada em um ritual solitário, tal qual o monólogo que se desenvolve.

Silmara Silva, em Exercício Sobre Medeia

O Coletivo Piauhy Estúdio das Artes, sob o comando de Adriano Abreu, apresenta a maturidade da arte de representar. Muito além da construção encenada, traz como fiel canalizador da essência teatral, o tema pra lá de sublime. Em tempos em que a facilitação da comédia é a prioridade pelos possíveis louros menos complexos, aplausos fáceis, plateia generosa e outros atrativos, apostam na tragédia para o exercício.

Por si só, a escolha já mostra o compromisso com a real arte e distancia-se de qualquer possibilidade de fazer mesuras às conveniências. A montagem, neste caso, é acima de tudo um ato intrépido. Pelos poros da densidade cênica escorrem coragem e uma força descomunal a ponto de deixar incautos e audaciosos desenxabidos.

Quem foi ao Theatro achando que ia ver algo digerível como alface, teve a tarefa indigesta de ser apresentado a um menu de verdades duras e o âmago da alma humana exposto pelas entranhas e do viés mais doloroso. É um soco no estômago que atinge em cheio o diafragma, tirando o fôlego e prendendo a atenção.

A cênica é tão consistente que a claque nem pisca diante da sequência fulminante de frases demolidoras. Aliás, o texto é um pastiche de linguagens e abordagens vocabulares urdidas sem precedentes estabelecidos por salvaguardas, mas, na vanguarda de unir termos eruditos com outros completamente populares. Um efeito que facilita a catarse e causa mais tensão à cena.

Silmara Silva, atriz e autora teatral

Em meio ao desfio de um novelo de pérolas simbolistas, o canto dorido de uma ciranda despetala qualquer coração empedrado. E tudo tramado com excelsa grandeza a ponto de dourar o pesar, dando-lhe uma compaixão muscular e pulsante.

Sem muito adentrar na mitologia em si, deixo a busca a quem quiser entender o emblemático universo medeiático à pesquisa dos Argonautas. Apenas para contextualizar, já que no palco o que vemos é o que não foi dito nem antes escrito, muito menos representado.

O apuro das intenções da atriz inicia-se ao adentrar à plateia. Ela está apenas com o foco facial, murmurando com seus botões num trançado de cordas que vêm do primeiro piso e mixam-se em frente ao território da encenação. Uma alusão clara à nau capitânea que levou Medeia a mares nunca antes navegados.

Não o traçado viajor de um aventureiro Jasão, mas ao mais profundo oceano de mágoas latentes, com feridas supuradas pela traição de um amor totalmente devotado, que recebeu a inglória emulação infecta da posse emotiva. Um equívoco cometido por todo e qualquer que se adonar do que não pode ser possuído, mas, conquistado diariamente. A correspondência do coração adormece de uma forma e, para seguir na mesma sensibilidade, é preciso reconquistar ao amanhecer.

Mas as cordas do coração de Medeia estavam numa intrincada fiação que a pôs a se iludir no mar bravio de um sedutor profissional. A quimera da personagem foi transfigurada no rastro da insídia a ponto de levá-la a cometer a tormentosa insânia com sua filiação, ao ver-se como mais uma filial e não a matriz de um amor, embarcado em tempestades e cercado de vagas abissais.

As mesmas cordas que sustentam o suplício de Medeia servem de suporte aos penduricalhos de suas feitiçarias, lançando as maldições com a propriedade de quem conhece a força do animismo e sabe valer-se de seus predicativos em benefício próprio.

Do moído cristal de quartzo que delimita nobremente o setor de onde vai por em prática os ebós, invocando deusas gregas e serviçais dos orixás, num diálogo surpreendente dentro da construção textual, que também pertence a Silmara, o espírito vingativo da feminilidade aviltada pela perfídia exsuda as imprecações com guizos de bodes e cabras expiatórios.

A direção cênica conseguiu reunir duas realidades aparentemente díspares com a fidalguia que lhe é peculiar. Adriano, põe no mesmo cercado elementos da Grécia antiga e o semiárido da Serra da Capivara. Bem que tudo poderia se passar entre os paredões protegidos bravamente pela arqueóloga Niède. E quem duvida que não haja entre as pinturas rupestres mais antigas das Américas algum desenlace trágico de um amor não correspondido? A matéria prima da teatralização foi, é e sempre será universal.

Adriano Abreu - ator, autor e diretor teatral

Exercício Sobre Medeia, que circula em território nacional desde novembro de 2013, desembarcou recentemente da cidade maravilhosa após temporada de grande sucesso. Não é para menos. A experiência teatral está realmente bem exercitada. A beleza da arte se faz presente do início ao fim da cênica apresentada como a força do mar em ondas, num indo e vindo infinito.

Longe da brevidade que se vê pela pouca consistência de encenações que não encontram o veio da mina, contrariamente, vaticino vida longa à encenação e seus bem venturosos artistas, simplesmente porque merecem. Não é todo dia que alcançam nosso íntimo a ponto de nos fazer pensar profundamente não apenas o exposto, mas as entrelinhas enlinhadas na sutileza da gestalt.

É impossível sair ileso com a robustez encenada por Silmara e sua trupe. Mesmo que não se conheça os arquétipos que fundamentaram a tessitura cênica, de alguma forma o desconforto do poder mágico das Graças e Fúrias numa bacante estarão furtivas a lançar as fantasias da representação na plateia. O espetáculo, acima de tudo, faz pensar. Isso é arte. Pura!

Ao final, depois que fiquei atônito com o que vi e ouvi, calcado pela trilha, o figurino, o cenário inovador e os objetos de cena, todos econômicos, mas usados com uma propriedade extrema, verbalizei apenas um “Uau!”. Levantei e aplaudi de pé, simultaneamente com todos os presentes.

Faça-se um parêntesis à luz de Pablo Gomes, que climatizou o psicologismo cênico, tonificando matizadamente e pontuando todo o exercício de Medeia e de Silmara. A iluminação transcendeu quando o spot saiu de um ponto fixo e, nas mãos da atriz, ressignificou o produto a ser iluminado, no contraluz a sombrear a plateia com a personagem engrandecendo em primeiro plano e no auge que antecede o sacrifício dos filhos no rubro escurecido da sangria.

Pablo Gomes, iluminador

Entre soluções de extremo bom gosto, que afinaram a encenação, e um discurso lúdico a transpor o escuro da personagem, o artista revelou-se como co-autor da obra, luminescentemente. Esplêndido!

Adriano ainda declarou-me que as penas que soltam-se do teto da caixa cênica na tensão final são uma alusão em forma de denúncia artística às agressões que sofrem os guarás do Delta do Parnaíba. O diretor afirma que as aves estão sendo dizimadas por furtos de sua mais valia, supondo que suas penas estejam servindo para adornar eventos em outras plagas. Que praga! Alô Ibama! Alô Instituto Chico Mendes! Olá Secretaria do Meio Ambiente!

Para concluir, não sei se é possível absolver a personagem de seus infortúnios. Nem muito menos se as justificativas apresentadas em cena possam minorar sua pena. Entretanto, o exercício a oportunizou a uma oitiva inédita e, mesmo que não a redima, torna-a mais humanizada. Graças as nuances que só a arte teatral pode nos premiar, Medeia transforma-se num exercício saboroso. Magnífico!

Objetos de cena no tablado do Theatro 4 de Setembro

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