A desconstrução conceitual de feminicídio

No decorrer dessa semana, fomos surpreendidos pela mídia local com matérias em que um grupo de profissionais, na sua maioria mulheres, entre elas delegadas, representante do Ministério Público e Defensoria Pública, bem como magistrado e integrantes da Coordenadoria Estadual de Políticas para mulheres, se reuniu no Fórum Cível e Criminal para tratar entre outros assuntos ligados à defesa da mulher, do tema intitulado feminicídio, inclusive enfatizando que o Piauí em breve estará adotando o protocolo da Organização das Nações Unidas – ONU mulher – para investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero, implementando-se assim as diretrizes nacionais para investigar, processar e julgar o feminicídio. De início, seria uma boa notícia se alguns dos atores envolvidos em tal reunião tivessem legitimidade para tanto. A coordenadora da CEPM, Haldaci Regina da Silva, é esclarecedora em declarações aos meios de comunicação quanto às diretrizes traçadas: “O objetivo é fazer com que o nosso Estado entenda o que é feminicídio, que todos os órgãos investiguem e julguem esses crimes contra a mulher sob a perspectiva do gênero”. O que se observou é que os órgãos do Ministério Público que têm legitimidade de intentar na Capital a ação penal nesses casos – os promotores integrantes do Núcleo do Júri, já que se trata de crime contra a vida, e só podem ser processados e julgados pelas duas Varas aqui existentes -, foram totalmente deixados à margem da discussão da matéria e sem a possibilidade sequer de opinar sobre o tema abordado, o que se depreende que se não foi por deselegância ou desconhecimento de tais atribuições a falta de convite, as ausências desses membros ministeriais atingem o mais elementar senso ético e profissional. Aliás, a Resolução 7 do Colégio de Procuradores de Justiça – CPJ, ao estabelecer as atribuições das promotorias, no que concerne aos crimes dolosos contra a vida é clara ao determinar que os promotores integrantes do Núcleo das Promotorias do Júri são os responsáveis por toda e qualquer audiência e atuação, judicial ou extrajudicial. Pois bem, repita-se, quem exatamente tem o poder de denunciar tais crimes foi sorrateiramente colocado de fora dos debates relativos à matéria, o que deslegitima qualquer ação de grupos de interesse, por mais qualificados que sejam.

É interessante enfatizar, dentro da perspectiva do que foi tratado e levado à imprensa, que feminicídio conceitualmente é o homicídio qualificado de mulheres em razão do gênero. A norma alterou o Código Penal e incluiu o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio e a elencou no rol de crimes hediondos (Lei 8.072/90). No parágrafo 2º da Lei 13.104, de 9 de março de 2015, vê-se que o legislador considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar e menosprezo e discriminação à condição de mulher. O que é preciso saber é que nem todo assassinato praticado contra mulher no seio doméstico ou familiar pode ser interpretado como feminicídio. Se assim o fosse, a norma viria expressa da seguinte forma: “Se o homicídio é cometido contra a mulher”. Há de se convir que a expressão utilizada pela norma penal “por razões da condição de sexo feminino” está ligada à condição de gênero. Ou seja, não é todo crime. Ademais, é trivial que não se admite analogia contra o réu em matéria penal. O certo é que temos visto boas figuras ligadas ao movimento em defesa da mulher, e algumas desavisadas do mundo jurídico, entenderem que o feminicídio é tão só o assassínio da vítima mulher, ampliando o seu conceito legal. Aceitar isso é fazer analogia in malam partem, não assimilável pelo direito penal moderno, e atingir em cheio o princípio da reserva legal, bem delineado nos sistemas penais avançados e nos Estados Democráticos de Direito. Mais ainda, é desconstruir o conceito legal de feminicídio.

De outra monta, talvez algo que os nobres participantes de tal reunião desconhecem é que, afora uma denúncia oferecida pela 14ª Promotoria logo após a entrada em vigor da lei, onde qualificou a conduta do acusado como feminicídio - contudo mais com intenção de provocar o debate no âmbito do judiciário, mas que se enquadraria comodamente na motivação fútil -, não há registro de nenhum caso de feminicídio no Núcleo das Promotorias do Júri de Teresina até o presente momento. Ao que sabemos também, a tal delegacia criada com esse objetivo, não tem nenhuma estrutura capaz de dar uma resposta à altura na hipótese circunstancial de caracterização de um crime dessa natureza, o que certamente destoa do padrão ONU de investigação. No mais, é muito espetáculo para pouca ação efetiva.

Comente aqui