REDAÇÃO DO ENEM 2019: UM TEMA EXCLUDENTE

Provas do Enem 2019 aplicadas no fim de semana (Foto: Ana Carolina Moreno/G1)

Em 2010, eu e meu irmão percorremos 104 km da isolada cidade de Dom Inocêncio, no sertão do Piauí, até São Raimundo Nonato, cidade polo da região. Fomos de moto por uma estrada de chão fazer a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Eu estava concluindo o ensino médio na Unidade Escolar Estadual Maria de Oliveira Rodrigues, em Dom Inocêncio.

Naquele ano, garanti meu acesso à Universidade Federal do Piauí (UFPI) para o curso de jornalismo. Meu melhor desempenho foi justamente na redação, onde atingi 1000 pontos, a nota máxima. O tema naquela edição foi "O trabalho na construção da dignidade humana".

Em 2010 eu nunca havia pisado numa sala de cinema, coisa que só fiz depois que vim morar na capital. Assim como eu em 2010, a maioria dos jovens das pacatas cidades do país nunca foi ao cinema. Neste domingo (3), o tema da redação do Enem 2019 foi "Democratização do acesso ao cinema no Brasil". Para mim, um tema que desfavorece muitos candidatos.

Alunos levados em paus de arara no Piauí (Foto: Jailson Soares/PoliticaDinamica.com)

Num país onde muitas escolas são precárias [principalmente nos rincões mais isolados], onde falta transporte escolar, onde falta ensino de qualidade e onde até a internet ainda não chegou em algumas partes, é um tanto desarrazoado cobrar esse tema. Segundo o IBGE, no ano de 2015 apenas 10% das cidades brasileiras possuíam cinema, sendo que um 1/3 delas estavam localizadas no Estado de São Paulo, o mais rico do país.

O dado, de fato, reforça a necessidade de garantir o acesso ao cinema no Brasil, uma necessidade inegável. No entanto, a cobrança desse tema numa prova feita por estudantes de diferentes realidades e de regiões distintas penaliza muitos daqueles que, mesmo que quisessem, não poderiam ir no cinema num domingo, num feriado ou em um dia qualquer.

Deve-se ressaltar que é possível alguém discorrer sobre uma realidade da qual não tenha familiaridade e muitos até podem obter nota satisfatória, mas é inegável que o tema do Enem 2019 é desigual com uma boa parcela. No Brasil, a disparidade no ensino é gritante e as regiões mais isoladas, quase sempre, são as que mais sofrem com esse abismo do sistema.

Nos rincões do país, não existe cinema (Foto: Gustavo Almeida/PoliticaDinamica.com)

Dados do IBGE do ano passado mostraram que quase 4 em cada 10 jovens de 19 anos não concluíram o ensino médio. Desse total, a maioria não frequentou mais a escola e 55% desistiram de estudar ainda no ensino fundamental. Segundo o MEC, 19 anos é a idade ideal para a conclusão do ensino médio. A taxa de não conclusão é ainda maior nas zonas rurais.

Os motivos para essa realidade cruel são os mais variados e a questão socioeconômica é uma das mais destacadas, além, claro, da pouca atenção do Poder Público na educação em regiões isoladas e pobres do país. Em muitos lugares, as condições das escolas públicas ainda são precárias e a tecnologia chega em ritmo bem mais lento do que nos centros urbanos maiores.

Diante dessa realidade, não é difícil imaginar que o tema "acesso ao cinema" seja bem mais complicado para jovens que estão concluindo o ensino médio em cidades pequenas e comunidades rurais distantes. Não é difícil pensar que alunos que sofrem com poeira e sol em cima de paus de arara [sim, eles ainda existem], tenham sido surpreendidos com o tema.

Antes de colocar em voga a democratização do acesso ao cinema, é preciso democratizar o acesso à educação digna e de qualidade em todas as partes do país, garantindo uma sociedade mais justa e reduzindo o abismo que impera no nosso sistema educacional.

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