O contar das coisas

Muito difícil suportar quando aprofundamos o nosso pensar nas coisas, nos calafrios que a covardia histórica com que todas as formas de conhecimento reservaram as mulheres no contar das coisas ao longo da vida. Lembro de um pensamento da lúcida Clarice Lispector que disse “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível de fazer sentido.” Ela falava de um tempo que lateja, ou seja, daquela dor angustiante que vai e volta, num movimento massacrante de um pugilista jogado nas cordas. Não estou aqui me referindo a um simples esquecimento, um erro, um equívoco ou algo parecido. Estou me referindo a um ato criminoso cometido ao longo de séculos e séculos que excluiu do contar das coisas o papel da mulher, a identidade de pensadoras e pensamentos que contribuíram de forma direta na construção da mentalidade, das ações e feitos humanos ao longo dos tempos.

Minhas palavras não se remetem a nenhuma bandeira política feminista, nenhuma mudança de ordem, até porque quebra de paradigmas e modelos são ajustes factuais quando o simples ato de pensar e conhecer são possíveis. As mulheres não precisam do que digo para se apresentarem ao mundo como capazes e merecedoras de reconhecimento profissional e intelectual, para isso as últimas décadas reservaram capítulos importantes para a justa luta das mesmas, o espaço já é ocupado e no palco da existência, papéis são dignamente interpretados pelas mulheres.

Aqui eu venho bulinar naquilo que é construído e transmitido como memória, como narrativa estabelecida e embalsamada na consciência dos indivíduos. O enfoque aqui observa a sutileza das palavras, a descrição do cotidiano com suas evidências e interpretações restritas de datas, nomes, acontecimentos e pensamentos que se configuram como as coisas contadas ao longo do tempo. São exemplos silenciados principalmente do ponto de vista intelectual, que não tem nem mesmo o direito de serem temas de conversa e situações em embates estudantis, são fantasmas de um currículo caduco e opressor que fazem dos livros didáticos fortalezas de modelos e paradigmas que mesmo fadados à morte ainda haverão de excluir gerações e gerações do simples ato de saber sobre esta ou aquela mulher.

O habilidoso senso comum, percebendo as inevitáveis mudanças foca seu discurso em supostas “conquistas” profissionais, financeiras e políticas, deixando claro que a mudança de modelo nos papéis sociais é na verdade uma adequação às exigências de mercado dos novos tempos que reconhece na mulher uma força e uma mente para o trabalho, mas que desconhece o ser, o para-si desta existência, a mudança de postura passa por compreensão e estudo livre do passado, por uma narrativa justa e que reconheça que toda a nossa cultura foi moldada e manipulada para ser contada de tal forma que tudo aquilo que nos é apresentado se mantenha como verdade absoluta e castradora de qualquer grito de liberdade e esperança.

Sinto como homem uma dor profunda pela manutenção da injustiça, da falta de princípio e dignidade no olhar e na lembrança que o mundo insiste em reservar ao pensamento da mulher. Mesmo de forma tímida e distante, reconhecendo que ainda haverá muitas barreiras, alimento nas novas gerações as sementes de um amanhã fértil de jovens pesquisadores que tragam a energia de novas reflexões, a força de novas e velhas descobertas junto com as chaves da verdade para abrir as portas de novos tempos.

O contar das coisas ainda há de ser por muito tempo um mistério muito bem construído, difundido e mascarado. O contar das coisas conta com o auxílio luxuoso e eficaz de um conservadorismo militante e preparado para a preservação de obscuridades. A expectativa da liberdade se encontra no amor ao conhecimento, no ato corajoso de pensar e propor uma tomada de consciência. O contar das coisas com certeza não pode mais se resumir as coisas que são contadas.

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