Bloqueio criativo é desculpa de quem não tem criatividade

Há um mito que percorre as agências de publicidade. O famoso bloqueio criativo ou crise criativa. Creio que está mais ligado ao prazo exíguo para entregar um job e à tentativa de ganhar tempo argumentando a favor de elastecer o prazo – parece mais honesto. Porque se for pra querer sustentar uma tese justificando a não conclusão de um trabalho, parece muito mais preguiça e limitação profissional.

Até porque uma coisa que a criatividade não tem é limites. O poder criativo é como um poço sem fundo da água mais límpida. Quanto mais se tira, mais ela apresenta-se pura, bela e cristalina. É água mineral das melhores que faz bem ao corpo e à alma. No máximo, o criador pode ficar cansado. Nada que uma boa noite de sono ou um aumento polpudo não possa resolver. (hahaha)

A ciência vem traçando uma profunda análise dos vários tipos de criatividade. Mas não tem se ocupado em entender o processo criativo. Descobrir o mecanismo que desencadeia a criatividade é uma incógnita que dificilmente será descoberta, no todo. É algo extremamente abstrato e praticamente indecifrável tentar compreender o caminho que leva do ponto de partida, a estrada sinuosa percorrida até chegar à obra pronta.

O genial poeta (pra resumir) norte-americano, Ezra Pound (quem não conhece, pesquise, vale a pena), talvez um dos dez maiores do século XX, abusadíssimo (isso é elogio), construiu uma teoria muito interessante sobre a encantadora criatividade. O bardo se referia ao processo literário, mas, peço vênia para traçar elos de ligação e adaptar ao propósito deste texto.

Mas, antes, vamos nos introduzir no universo poundiano com a tradução de um poema dele feito por um ilustríssimo poeta piauiense – talvez o maior de todos: Mário Faustino (gênio).

Saudação

Oh geração dos afetados consumados

e consumadamente deslocados,

Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,

Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,

Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes

e escutado seus risos desengraçados.

E eu sou mais feliz que vós,

E eles eram mais felizes do que eu;

E os peixes nadam no lago

e não possuem nem o que vestir.

Vamos lá. Em sua obra o “ABC da Literatura”, Pound condicionou os tipos de escritores em seis: inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lançadores de moda. Para nós, os três primeiros caem como uma luva para analisar os tipos de criadores na publicidade por minha conta e risco.

Vamos começar do fim para o começo. Da forma mais simples e direta, segundo Ezra, os diluidores são aqueles que absorvem as ideias dos mestres e criadores e, sobre suas obras, tentam criar ou recriar.

Mas é lógico que isso não vai dar certo. A falta de originalidade vai ficar perceptível. Alguém vai dizer: “nossa, parece com...”. Aí é o fim da picada. O diluidor é um copista. Muitas vezes, a cópia é tão mal feita que logo se vê alguma falha bem grotesca. Do erro de português a uma cor mal estudada, passando pela falta de equilíbrio na proposta, que mais parece desconjuntada. Se cair nas mãos de um bom executor, até que pode sair uma cópia bem feita, mas é raro. E quando se valem da referência de outra cópia? Imagine a cópia da cópia. O clichê do clichê. É por aí que se detecta o tipo.

É o que mais tem. Os diluidores no reino da publicidade são endêmicos. Logo se vê que têm pouco ou nenhum conhecimento. Os que tem, não conseguem conjugar o que aprenderam por muito tempo, fazendo cercas e construindo fronteiras pra si mesmos. Alguns têm alguma intuição. Isso é o que pode salvar. Aqui e acolá, conseguem até fazer algo interessante. Mas, claro, a falta de regularidade, que é a consequência de esperar pela inspiração chegar, nem sempre se ajeita com o tempo curto e a desculpa de bloqueio criativo é o que mais se ouve. Mesmo com o briefing mais bem feito do mundo.

Quem vive na criação apenas contando com a intuição, é só um arroubo criativo disfarçado de talento, mais cedo ou mais tarde vai ver sua fonte secar e passa a ser repetitivo. Logo é encaminhado para fazer anúncios de varejão e os trabalhos mais grosseiros, que precisam de menos elaboração. Isso é, quando é aproveitado e consegue se manter no métier. Geralmente vai durar pouco na área e a própria vida em parceria com o mercado vai levá-lo a outro segmento profissional. É um autêntico produto paraguaio.

Sabe como detectar facilmente a “obra” de um diluidor? Nas ruas, há aqueles cartazes gigantes que se chamam de outdoor – em desuso nas grandes cidades (em conflito com a poluição visual). Quando você encontrar um com um monte de mensagens diferentes no mesmo espaço, do tipo que é preciso ficar parado na frente dele e levar algum tempo para ler tudo, bingo! Você achou o “trabalho” de um diluidor na publicidade. O outdoor tem a desafiante tarefa de ser lido/decodificado en passant. Se você não ficou instigado a entender ou sacou o que pretendia a peça ao passar de carro, numa velocidade média, então tenha certeza que aquele cliente jogou dinheiro no mato.

E olha que tem muito anunciante que prefere contratar um fazedor de “arte” por aí do que investir seu dinheirinho numa boa agência. A propaganda mais cara é aquela em que a marca fica marcada pelas peças ridículas. Às vezes, o ridículo também é usado na criação, mas tem um propósito bem defendido no script. Quando é pela falta de perícia, faz o inverso do que pretendia o anunciante: que é aparecer bem. Pode aparecer bem mal.

Já os mestres, para Pound, são aqueles que conseguem conjugar o que constroem os inventores, muitas vezes até melhor que eles. Dominam as linguagens e deitam e rolam como querem, construindo com a construção dos inventores o que há de mais autêntico. Quando você se depara com algo verdadeiramente tocante e que não remete a algo anteriormente visto, lido ou pensado, está diante da criação de um mestre.

Basicamente, a boa publicidade é feita pelos mestres. São criaturas extremamente estudiosas. Ávidos consumidores de livros, revistas e todo tipo de publicação e arte. São a curiosidade em pessoa. Por tudo se interessam. Música e filmes de todos os gêneros estão sempre em sua longa fila para serem ouvidas e assistidos. Os verdadeiros mestres conhecem todos os clássicos ou se esforçam na busca por ver, ler e ouvir o que marcou a humanidade com a criação dos inventores e outros mestres.

Obviamente que possuem um extremo bom gosto. A estética só pode ser apreciada por quem a conhece. Bem como é facilmente detectada a falta dela por quem domina os arquétipos criativos. Os mestres reconhecem os outros mestres e os inventores. Bem como não são enganados pela charlatanice de quem quer passar pelo o que não é. “Quem é de verdade sabe quem é de mentira”, já dizia o poeta do asfalto e do street skate, Chorão – numa manobra flip poemática muito bem executada.

Quando jovens, os mestres publicitários são a desorganização mais evidente. No entanto, conseguem dar conta do serviço, mas como todo iniciante, se atropelam entre o tempo de criar e o tempo de aprender. Isso vai até um pouco depois da casa dos trinta anos. Depois, começam a dar o verdadeiro show. Diante de tanto conhecimento acumulado, tudo parece fácil e rápido. Só precisam de novos desafios. E se forem chegados ao dinheiro, um bom salário.

Voltaremos aos mestres, mas vamos concluir a sequência do Ezra. Finalmente os inventores. Na literatura, são aqueles que descobrem e propõem um novo modelo literário. Ou melhor, rompem com toda a ordem estabelecida e fazem o novo. Só a eles cabem o adjetivo original. São raríssimos na publicidade. Os inventores estão ocupados com algo muito mais desafiador e não estão nem aí pra ninguém sobre o que pensam do que realizam. São a essência da criação. Da fonte onde bebem os mestres. Ponto.

Claro que tem muito diluidor querendo ser mestre. Mas o mestre nem está preocupado em ser mestre. O verdadeiro mestre apenas tem prazer em aprender. E quando é realmente um mestre, não teme de forma alguma dividir o que sabe. Aquela expressão “vai comer a tua bóia” quando aplicada a quem compartilha o conhecimento como alerta, só preocupa a quem não tem segurança do que sabe.

Um bom criador em publicidade alia o conhecimento a intuição. Aliás, as duas são inseparáveis. Quando já está no modo senior, destila seu repertório sem cerimônia. A vivência faz ver com antecipação qual o melhor caminho para uma peça, aquela que tem mais chances de atender ao cliente. Não tem dificuldades de criar com baixo orçamento, muito pelo contrário, acaba rendendo mais diante das adversidades.

O mestre em criação sabe encontrar a melhor vereda para a realização das peças, pensando em cada etapa, aliviando ou carregando na tinta conforme o time que tem em campo. E é da simplicidade que saem os produtos por ele pensados. Ser simples é difícil. Só o tempo e a experiência pactuados com a intuição e o conhecimento dão o gradiente desse poder quase mágico. Os mestres têm o poder de encantar. Quando você ver, ouvir ou assistir algo que toque o seu coração, que lhe emocione ou que desencave a curiosidade por conhecer um produto exibido em uma publicidade, foi o trabalho de um mestre.

O mestre na publicidade geralmente flerta com a arte, quando não é um artista. Sabe tocar algum instrumento, faz poemas, pinta ou elabora outros produtos sensoriais, como instalações. E se for um dominador das linguagens, sabe escrever razoavelmente, a ponto de convencer. Aliás, é isso que um criador em publicidade tem que conseguir sempre: convencer. E mais, com as suas variantes: seduzir, persuadir, induzir, cativar, atrair, incutir e até aliciar (no bom sentido, é claro).

Mas com certeza vai atrair para si muita inveja e ciúme. Entretanto, quem é mestre vai saber se desvencilhar das cascas de banana que estão pelos corredores das agências. Provavelmente vai recolhê-las e usar como adubo para algum cultivo mais probo. Só quem não sabe aproveitar da oportunidade de estar com um mestre criador é capaz de fazer estas criancices. Por falar em criança, o velho mestre mantém sempre viva o que há de melhor na infância: a capacidade de ver a beleza das coisas mais simples com uma lente de aumento. Como dizia Pound: “Genius is the capacity to see ten things where the ordinary man sees one.”

Ainda tenho umas dicas para despertar a criatividade que, algumas vezes, os jovens mestres ainda não sabem alimentar. Sim, a criatividade também precisa de exercício para manter-se sempre robusta e vistosa. Mas fica para outro artigo porque esse aqui já tá muito comprido.

À propósito, não me considero um mestre. Muito menos um gênio. Também não sou diluidor. Talvez não passe de um bobo que tenta argumentar suas certezas. Mas de uma coisa não tenha dúvida, como dois e dois são quatro e são quatro mesmo, cartesianamente falando, sou um cara que adora estudar e trocar ideias. Não perco a oportunidade de dizer a quem quer ouvir que o conhecimento e a dignidade são as únicas duas coisas que uma pessoa realmente possui e ninguém jamais vai subtraí-las. Tudo mais é perecível.

E bote o barco pra navegar. Que os ventos soprem para inflar as velas. Afinal, o bom marinheiro não se faz em mar calmo. E se faltar vento, mãos aos remos, força na peruca e nos braços para tocar pra frente. Evoé!

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